Oi, tudo bem?
Sim, é vida real. Escrevo da Aldeia das Amoreiras, uma cidade invisível no mapa onde as ruas não têm nome e a minha casa, como as outras, não tem número. O correio não chega aqui.
Hoje é um dia especial pra mim: faz três anos que saí do Brasil para morar em Portugal.
Confesso que viver aqui me deixa dividida até hoje. Quem é que escolhe morar na Aldeia? Nos dias difíceis, lembro que foi um sonho antigo que me trouxe. Sentada na repartição pública em Brasília, imaginava como seria uma vida nova se a minha de repente sumisse e eu pudesse fazer o que eu queria de verdade.
O que eu queria era mergulhar nos ensinamentos espirituais e meditar.
Parecia impossível, mas aconteceu. Sou extremista, por isso pedi exoneração, vivi num ashram, meditei até sentir dor em todas as partes do corpo, saí do ashram, continuo meditando igual, começou a pandemia, fronteiras fecharam, em vez de monja, casei, vivo na Aldeia, Ufa.
Não foi asséptico nem indolor como eu imaginava. Então hoje, três anos depois, volto para o começo. Para além dos extremos, tento entender o que é o caminho do meio que o Buda descobriu aqui agora - a costura de corpo com espírito que existe no minúsculo ordinário.
Cozinhar, escrever, limpar a privada. Começar essa Newsletter para nos encontrarmos sob o manto cósmico da escrita, além do tempo e do espaço. As fronteiras fechadas ajudam porque me obrigam a viver o presente nesse lugar onde nada acontece.
O que a reclusão te trouxe?
Nesse momento, o Lee conserta a ferrugem da porta do nosso Volkswagen 2005 enquanto noto que os ninhos que as cegonhas construíram nos postes de luz agora estão vazios.
Olho pro céu, me dá um alívio. Uns bichos desastrados, absurdos mesmo, quase improváveis. E elas conseguem voar tão alto.
Livro novo
Enquanto o mundo continua fechado, aproveito para trabalhar no livro novo, um diário-romance-biografia sobre os meus tempos vivendo no ashram. Já teve mais de 300 páginas, escritas e reescritas um milhão de vezes e recomeçadas de novo do zero. Se tudo der certo, termino o manuscrito ainda nessa encarnação - ou em 2021, pra ser mais exata.
Uma parte boa é que na pesquisa descobri muitos outros escritores que viveram em monastérios ou que praticam budismo. Não estamos sós! Aqui vão três indicações maravilhosas:
Nobody home reúne a correspondência trocada entre o poeta beat Gary Snyder e Julia Martin, escritora e pesquisadora sul-africana. Muita conversa sobre literatura, apartheid, política norte-americana, escrita e budismo - ela, no budismo tibetano; ele, no zen.
Three simple lines - nessa narrativa de viagem que acaba de sair do forno, a escritora Natalie Goldberg conta sua aventura pelo Japão explorando o universo do haikai, um forma poética curta usada no zen e que no Brasil ficou sacralizada com a poesia do Leminski.
The book of longing é um clássico preferido do Leonard Cohen, com poemas que vão do erótico à meditação e refletem a relação dele com o zen budismo (Cohen viveu 6 anos num mosteiro zen na Califórnia!).
Workshops bem legais
Em março tem Diante da Escrita, com a Andéa del Fuego, desta vez no formato intensivo, dos dias 16 a 19. Corre que as vagas acabam rápido!
Hidden Lamp (em inglês) - o Upaya Dharma Zen Center tem esse grupo de estudos maravilhoso com a Zenshin Florence Caplow, autora da coletânea histórica de koans (pequenas histórias zen) sobre mulheres. O grupo se concentra no estudo dos koans e na escrita a partir de um estado de mente amplo e consciente. Participação por doação voluntária.
Também quero dividir com vocês...
... essa ilustração que eu fiz em janeiro, porque ela me deu muita alegria. Então você começa a desenhar e aí, sem saber muito bem como, aparece uma imagem diferente de tudo o que você fez antes antes. Por que? Acho que o ordinário mágico que vem se forçando na minha vida aparece agora nos meus desenhos também. O Buda se apresenta num corpo feminino e descansa sob a lua da iluminação, tomando uma xícara de café com leite.
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,