Acabei de terminar a ilustração de um vaso cinza-escuro contra um fundo amarelo.
É uma ilustração simples para a qual não consegui parar de olhar depois que terminei. É um fenômeno raro - terminar a obra, olhar sem parar - que não acontece apenas com as ilustrações. Acontece também com certos textos. Releio dez, quinze, vinte vezes. O café passando e eu ali, dando mais uma lidinha naquelas frases já decoradas que por alguma razão mágica - descubro, quase com surpresa - fui eu que escrevi.
Ninguém me ensinou o significado deste tipo de evento. Aprendi comigo mesma que é um bom sinal. Significa que a ilustração ou o texto me provocam. Significa que há ali algo magnético e inexplicável; é como se a obra tivesse alguma coisa. Impossível apontar o quê, mas estou convencida de que é alguma coisa que existe de verdade, muito embora pertença ao maravilhoso reino do Intangível.
Posso dizer sem hesitar que todas as minhas criações preferidas geraram este resultado. A vontade de ficar olhando, na procura silenciosa de um elemento a um só tempo presente e escondido. Onde? Não sei. Mas minha experiência diz que a vontade de admirar estas obras não termina nunca. Os anos passam e o desejo de ficar olhando continua. É o que sinto, hoje, com esta ilustração despretensiosa do vaso cinza-escuro contra um fundo amarelo.
Apesar de saber o que significa na minha experiência pessoal, tenho dúvidas se a aura que pressinto nestas criações é algo que alcança outras pessoas além de mim. Tenho indícios, mas por enquanto nada conclusivo. Por exemplo: uma pintura que fiz numa noite de 2021. Até hoje não consigo parar de olhar pra ela.
Assim como este vaso mais recente, a obra de 2021 é minimalista. Apesar da simplicidade despretensiosa, ela é de longe minha ilustração mais procurada. Tenho a impressão que as pessoas sentem a mesma atração que a minha, por isso as demandas parecem não ter fim: cópias desta pintura foram vendidas para as pessoas mais aleatórias do mundo. Organizações budistas importantes que não conheço pessoalmente a utilizaram para promover seus ensinamentos, e há exemplares dela em paredes de Portugal, do Brasil, França, Eslovênia, Holanda e até da Austrália.
Todas estas obras magnéticas - posso chamá-las assim? - têm um elemento em comum. Elas nasceram a partir de um processo parecido.
Volto agora para o vaso cinza contra o fundo amarelo. Pintei este vaso de um jeito pouco usual. Mais ou menos assim: nos olhos da minha mente, enxerguei um vaso preto com um ramo de flores contra um fundo amarelo. Era uma imagem que se apresentou espontaneamente e que não se relaciona em nada com a minha vida, mas vê-la no meu mundo interno me deu certeza. Eu sabia que deveria pinta-la. Não sei muito bem por que; natureza morta não é um tema que costumo retratar. Gosto mais de pintar pessoas. Aliás, nem tenho vaso preto ou paredes amarelas em casa.
Além da falta de razão, houve um outro elemento misterioso e ao mesmo tempo inquestionável que surgiu no momento em que decidi pintar: a imagem tinha que ser grande. Toda minha experiência e arcabouço lógico iam contra esta ideia. Afinal de contas, um vaso preto é um tema simples que pode ser resolvido facilmente num papel tamanho A4.
Mas a imagem na minha mente pedia: grande.
Contra todo bom senso, tirei do armário uma folha A2. Veja bem: trata-se de um tamanho enorme para uma aquarela. Meu eu racional fazia comentários, isso vai dar um trabalho desgraçado e ainda por cima é um desperdício imenso de papel e tinta. Mesmo com tanta insistência, descartei a lógica e decidi que iria pintar aquela visão capturada pela retina do olho da minha mente da maior maneira possível. Especificamente: num 42 X60cm.
Comecei a pintar e não pensei em mais nada. Passei cinco horas no atelier num tipo de transe, sem comer nem tomar água, até a obra terminar. Fiquei lá pintando, simplesmente, num processo de colaboração com aquilo dentro de mim que, apesar da não possuir nome, tem desejos específicos inexplicáveis. Éramos um time falando duas línguas que viravam tradução ali no papel. A parte misteriosa do meu ser profundo criativo pedia mais amarelo limão ou pinga mais três gotas de ocre profundo, e a outra parte – o eu sólido – obedecia.
- Mais uma camada de amarelo no fundo [a voz]
- Mas já tá bom, se fizer mais uma vai dar merda e manchar tudo [meu eu racional]
Daí a voz ficava em silêncio, e eu obedecia. Uma camada extra, tudo bem.
Deu certo; o amarelo do fundo ficou lindo. Muito diferente do que eu vi na imagem mental. Mesmo assim, algo em mim sabia que era o amarelo certo. O vaso e as flores, também.
Mas faltava algo.
Quando fui guardar a ilustração, esbarrei no nanquim e duas gotas pretas voaram no papel. Puta que pariu. Deixei. Elas secaram. Olhei de volta e constatei. As manchas pretas ficaram lindas ali; um registro da imperfeição deste mundo 3-D na aquarela grande e imaculada de execução complexa.
Quem lê meus textos sobre escrita contemplativa sabe que sou fã da criação como prática, como você pode conferir nesta edição do Sofá da Surina.
De tanto escrever e desenhar, notei que crio de muitos jeitos. Crio lutando, às vezes em conflito velado e de vez em quando em guerra declarada com o texto ou com a ilustração que está na minha frente. O bagulho aqui no atelier é louco. Às vezes crio com nervosismo, com vergonha, com ansiedade e às vezes negociando. Tem vezes que crio com ansiedade, tem vezes que crio com insegurança e às vezes mesmo com medo - o que vão achar? O que eu vou achar? Às vezes, enquanto crio, sinto que estão arrancando um órgão do meu corpo. Depois de terminar, fico com um sentimento de desproteção que só posso descrever como erosão de casca grossa que expõe o nervo do espírito às intempéries do samsara.
Ainda não entendi se esta sensação é horrível ou maravilhosa.
Mas também acredito na magia, porque né? A obra do vaso cinza-escuro com fundo amarelo foi uma dessas criadas com inspiração. Deve ser a idade, mas ando brega e mais compassiva com os clichês. A ilustraçãoveio pronta, de algum lugar mágico dentro de mim. Deve ter sido preparada no meu jardim interior, quando encontrou o canteiro certo que monteith duranteas manhãs de prática no atelier.
A prática e a inspiração andam de mãos dadas. E de vez em quando a vida dá de presente uma obra inspirada para lembrar que há um milhão de pessoas dentro de uma pessoa só.
Voilà. Depois me conta nos comentários as suas impressões sobre o meu vaso cinza-escuro de fundo amarelo, mesmo que seja nada. Mesmo que seja tédio.
Juro que quero saber.
Notinhas
Estou me preparando para publicar o meu novo livro, 108, um romance baseado na busca espiritual que inclui a história dos anos em que vivi num ashram. Demorei 4 anos para escrever, e de um jeito que é muito diferente da criação desta obra que descrevo aqui. Foi uma retirada de fígado. Então podem esperar algumas edições do Sofá da Surina contando um pouco mais sobre o processo de escrita.
Ainda estou pensando; não tenho certeza se vou fazer. Alguém aí tem dicas quentes sobre financiamento coletivo de publicações? Me manda nos comentários ou por email; vou adorar aprender com quem sabe mais.
Recomendações
Na semana em que escrevi esta edição, li dois textinhos muito singelos e poderosos sobre processo de escrita que gostaria de dividir com vocês:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Minha parte preferida do quadro da parede amarela com vaso cinza é a planta que brota do vaso e vai para algum lugar inalcançável, fora da tela. Os pontos escuros marcam uma espécie de desvio, dois buracos negros de descinhecido ali ao lado, mas a planta segue o caminho mesmo assim, passa entre os dois como se fizessem parte da paisagem dela, da trajetória dela. Muito bonito :)
Sobre o financiamento coletivo: no site do Catarse tem um guia bem completo sobre como fazer, com todas as informações. Mesmo que vc não faça o financiamento lá, vale a pena usar esse guia.
lindo texto e pintura. queria dizer que a história das gotas de nanquim me lembraram o que Ilaria Gaspari escreve em Lições de Felicidade sobre o ceticismo, mais especificamente, alcançar a ataraxia, uma suspensão de juízo seguida pela serenidade do espírito, se entendi bem o que é.