Acordei de um sonho no qual uma montanha me chamava. Já de pé, caminhando pela casa uma tarde depois, continuei ouvindo a voz que me pedia para encontra-la. A montanha falava numa língua de palavras impronunciadas que ouvi por trás dos ossos, longe dos ouvidos, com uma clareza impossível de ignorar
- vem
, dizia, vestida com a autoridade dos que ignoram a estupidez das prioridades humanas de conforto e preferem falar das urgências do espírito
: vem.
Dois dias depois, a voz continuava ressoando em eco pelas paredes da casa que na maior parte do tempo habito sozinha. Meu namorado trabalha pelo mundo e naquela semana não estava aqui. Na domesticidade do lar, meu gato sentou na cadeira ao lado observando o horizonte da pia enquanto o café com leite esfriava na mesa posta. Respondi à montanha, usando a língua das palavras humanas
- vou
, e este simples fato da vida me acalmou. Não sei dizer quando nem como partirei. Mas sei que é um compromisso, que é logo, que é simples e é um sim.
Shiva, o Deus indiano da transformação, mora no alto dos Himalaias, num lugar chamado Monte Kailash que hoje em dia fica em território chinês-tibetano e é destino de peregrinação para os hindus. Não se deve subir ao topo, defendem budistas, jainistas e os próprios hindus, porque fazê-lo seria um sacrilégio que em última instância traria risco à própria vida.
(O sagrado não é um território que se conquista).
A montanha que me chama, entretanto, não tem neve. É um monte tropical, rodeado de coqueiros e de gente vendendo banana e água de coco, localizado no estado indiano de Tamil Nadu, a 2100 km dos Himalaias. Diferente de Kailash - domicílio divino -, Arunachala é o próprio Deus Shiva que tomou forma de uma montanha e desde então brilha
incansável
sendo ao mesmo tempo Shiva e o elemento fogo, força da purificação porque transmuta em fumaça todo tipo de substância.
Acho a história linda. Mais do que isso, acredito na lenda que talvez pareça conto da carochinha ou metáfora. Para mim é verdadeira e literal porque meu próprio mestre espiritual teve um guru que teve outro guru chamado Ramana Maharshi que por sua vez se iluminou com os ensinamentos transmitidos diretamente por ela
: Arunachala Shiva, guru supremo em gloriosa manifestação geológica.
Para ser muito honesta, acredito em várias histórias da carochinha e em consequência aceito que a montanha me chama.
Demorei para contar para o meu companheiro porque senti vergonha. Ele é engenheiro de som, dado à solidez e precisão até mesmo das ondas sonoras:
- Quero ir pra Índia passar seis meses porque estou ouvindo Arunachala me chamar
, ao que ele respondeu, impassível
- Vai, meu amor.
Penso sobre essas coisas e sinto um traço de culpa que dura alguns minutos e se desfaz. Nada poderia ser mais insensato do que planejar uma peregrinação de meses para a Índia agora. Passei 2022 reformando a ruína de uma pocilga que depois de muito (muito muito) trabalho virou a casa.
Nada é mais insensato do que ir pra Índia agora. Saí do monastério há dois anos e finalmente meu mundo material começou a entrar nos eixos. Tenho um lugar confortável para viver e começaram a aparecer trabalhos legais com escrita.
Meu gato se adaptou à casa nova e estamos para pegar mais dois filhotinhos. Casa própria com filhotes de gato num país estrangeiro para um casal exilado de duas nacionalidades diferentes e sem filhos: isto é o mais próximo do que se pode chamar
família.
A sensatez diz que a minha decisão de viajar para a Índia não é correta. Para ser honesta, ando duvidando da capacidade de tradução deste esquadro binário que divide a vida entre correto e incorreto.
Meu coração sofre de uma impossibilidade congênita de aceitar o confortável. Habita dentro de mim uma rebeldia intransponível que recusa a maré calma casa-marido-gato.
O que é sensato? Abandonei minha profissão quando estava prestes a terminar o doutorado numa das melhores universidades da minha área na Suíça, e até hoje - 7 anos depois - me faltou o arrependimento. Não posso dizer que sou mais feliz, mas acho que sim. Outra voz me chamava. O destino, o meu destino, esta outra palavra do conto das carochinhas que seguro com as duas mãos.
Não sei quando irei para Índia porque o chamado veio mas a data ainda não. Mas quando vier, irei. Irei e no final do percurso, quem sabe, descobrirei que tenho na mão um bilhete de loteria incrível, brilhante, com todos os números
errados.
Perderei para sempre as chances de ficar serena e milionária com meu marido lindo e nossos três filhotinhos de gato que teriam o nome que escolheríamos na casa que construímos com nossas próprias mãos. Talvez meu destino seja este, um destino selado definitivamente quando nasci com lua e urano na casa 8 e em escorpião. Talvez eu perca tudo, caminhando às cegas em resposta ao chamado de uma montanha que fala uma língua que juro que posso compreender.
Caminharei até ela
sozinha
feliz e cheia
de tudo aquilo que me falta.
Portais
Aqui vai um vídeo (em inglês) no qual David Godman fala sobre a mitologia de Arunachala.
Uma expedição em busca de Shambala, Shangri-la - um vale da imortalidade localizado entre as fibras do espaço-tempo, no meio dos Himalaias. A step away from paradise (Thomas K. Shor) é um livro maravilhoso que conta a história real da aventura liderada pelo lama tibetano Tulshuk Lingpa na década de 1960.
Ganesha à beira-mar
… é o título do meu conto que está saindo na coletânea “Os peixes também têm rugas”, publicado pela recém-criada Editora Pousar. Este livro é uma reunião dos textos que produzimos durante uma oficina do Marcelino Freire - e tem texto dele lá também.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima
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O encantamento do chamado da montanha ficou bonito demais no seu jeito de narrar. Lindo, obrigada💕
saudades de subir uma montanha. tem uma bonita na minha cidade natal, vc me deu vontade de visitá-la.
beij.