Era um fim de manhã e eu caminhava de volta para a pousada. Vinha andando por uma estradinha que passava pelos fundos de um antigo monastério tibetano na cidade de Bir - norte da Índia -, quando uma mulher desconhecida me surgiu na frente como se fosse uma aparição.
De fantasma ela tinha tudo, incluindo o cabelo todo branco e a elegância de quem, mesmo ocidental, consegue vestir uma bata indiana sem parecer colagem malfeita. Me deu bom dia com um sotaque apropriadíssimo:
-British?
-Australian
, ela respondeu, e agora já não lembro o motivo, mas sei que tirou um volume da bolsa. Olha este livro aqui, é ótimo. A estranha não dizia coisa com coisa. Fiquei admirada com sua liberdade incondicional: ela não precisava de desculpas para me abordar e mostrar o que estava lendo. Fazia porque tinha vontade, e isso era
suficiente. Quanto ao livro que me apresentou, posso dizer que era incrivelmente bonito, com uma ilustração azul, branca, verde e caramelo na capa dura, e um título que me pareceu impecável:
Encontrando repouso na ilusão
Disse que tinha encontrado o livro na biblioteca do antigo monastério e logo tirou o exemplar das minhas vistas para devolvê-lo à chiquérrima bolsa de náilon. Deu um tchau e continuou o caminho na direção oposta à minha.
Era uma mulher muito bonita com seus setenta, oitenta anos. Vi quando atravessou o portãozinho que dava para o templo do antigo monastério, confundiu-se com o pé de bouganville cheio de flores cor de maravilha e sumiu para
sempre.
Fiquei obcecada pelo livro e naquele dia mesmo encontrei o título à venda num site. Descobri que fazia parte de uma trilogia - a trilogia do repouso - e encomendei os três volumes, mas até hoje só consegui começar a ler aquele que ela me mostrou na estradinha:
Encontrando repouso na ilusão
O livro é todo escrito em versos. Deixei o meu no atelier e sempre leio um pedaço aleatório antes das minhas práticas, em busca de inspiração. Apaixonei-me pelo autor, um sábio tibetano do século XIV, e entendi que o livro não se deixava ler por completo. Pelo menos para mim. Era um livro de consulta que se deve encontrar de outro modo.
Um pouco de cada vez.
Não sei se você já sentiu isso, mas quase sempre já sei que vou gostar de um livro ao tocá-lo pela primeira vez. Às vezes me engano, mas é raro. A obsessão por aquele livro do Longchempa foi certeira. O livro veio de um portal que se abriu por alguns instantes nos fundos do monastério para ligar a Índia de 2024 com o Tibet de 1300. O texto é precioso, e mesmo depois de oitocentos anos continua soando contemporâneo na forma e no conteúdo.
Ele era tudo que eu precisava. Um livro perfeito.
Os livros são artefatos mágicos, tenho certeza. No budismo tibetano, muitas vezes o dharma - os ensinamentos que libertam do sofrimento - são representados sob a forma de livros. Os livros são reverenciados, consagrados, protegidos.
As palavras, se você pensar, são ideias convertidas em substância que atravessam o tempo dentro da cápsula chamada livro. Não sei o que os ensinamentos dizem a este respeito. Para mim, de qualquer forma, enunciar através da palavra escrita é criar uma nova esfera de realidade.
Qual será o destino dos livros que criamos? Das realidades transmitidas pela substância da palavra? Ou, como disse a Carol Bensimon na última edição da sua newsletter Nevoeiro - que tipo de livro desejo escrever neste mundo tão volátil?
O livro do Longchenpa me fez desejar escrever livros que sejam mensagens criptografadas para alguém que ainda não tive a chance de encontrar.
Para quem escrevemos?
Alguns escritores escrevem para pessoas de um futuro distante. O Longchempa escreveu Encontrando repouso na ilusão para mim.
Estou num retiro muito especial aqui no templo budista de Três Coroas. Hoje, no fim da sessão matinal de ensinamentos, fui abordada em inglês por uma estrangeira de cabelo branco que procurava alguém:
-Você é a Paula?
-Não, sou a Surina.
-Onde eu encontro a Paula?
-Não sei quem é Paula. A senhora é britânica?
-Australiana
, ela respondeu, e ficou me olhando com o olhar vago, enquanto eu
eu
prestava atenção na bolsa enorme de náilon pendurada no seu ombro esquerdo.
-Vou te levar até a Paula, pode deixar.
Fiz umas duas perguntas em português para voluntários ali em volta e peguei no braço da mulher:
-Por aqui.
Caminhamos pelo jardim que passava pelos fundos do templo de Três Coroas no meio da garoa que caía:
-Eu te conheci em maio, na Índia. A senhora me apresentou um livro, você lembra? Encontrando repouso na ilusão.
Ela não lembrava. Disse seu nome, mas esqueci quase imediatamente. A Paula não estava no chalé de madeira onde deveria ser encontrada.
-Oh, well. Neste caso acho que vou conhecer a construção nova que fizeram lá atrás. Foi um prazer
, ela se despediu. Fiquei olhando enquanto a mulher de cabelo branco cruzava a pequena ponte de madeira sobre um córrego pequenino. Ao chegar do outro lado, virou-se para mim:
-That one is a very good book. It means I did a good thing for you, in the end.
E foi caminhando pelo jardim, pela grama verdinha e pelas hortênsias azui, o cabelo branco e fino esvoaçando por cima dos ombros estreitos, até sumir para
sempre.
Notinhas & 1 recomendação
-Nevoeiro, a Newsletter da Carol Bensimon que eu mencionei ali em cima:
Esta edição está chegando para você com um dia de atraso. Foi mal - estou em retiro e simplesmente perdi o senso de tempo. Achei que hoje era um dia antes.
Além de escrever o Sofá da Surina, sou autora de dois livros que gardam dentro de si códigos para serem decifrados por uma geração do futuro. Será que o leitor do futuro é você? Você pode conhecer e comprar o 108 e O mundo sem anéis aqui (entregas para todo o Brasil).
… ou, se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
O Sofá da Surina é uma Newsletter semanal que chega até você três vezes por mês. Sábado que vem é o último fim de semana do mês, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 7 de dezembro.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Eu acabei de ler 108 semana passada e foi um feliz encontro. Te conheci aqui pela newsletter, quando estava fazendo o caminho de Santiago e desde então acompanho seus escritos sempre encantada com pontos de conexão que se estabelecem. Foi uma ótima experiência ler o seu livro. Parabéns! E espero que outras e outros leitores do futuro possam também te encontrar. :)
agora quero ler este livro tambem aaaaaaaaaaa <3