Uma folha verde clara
pequena e perfeita
caindo no chão.
Perdi os segundos em que flutuou pelo ar, mas vi quando tombou de uma vez no piso de mármore. Além de mim, ninguém mais notou, absortos todos no transe gutural das preces recitadas em tibetano, incompreensíveis. Um monge de passagem quase pisou nela antes de descer a escada que dá para o palco
enquanto eu, incapaz de acompanhar as recitações na língua alienígena – queria levantar para salvar a folhinha e guarda-la dentro do caderno, mas não tive
coragem.
Entre eu e a folha, um metro e meio de vontade. Ninguém se importaria se eu levantasse, claro. Aquela multidão de mil, duas mil pessoas espremidas embaixo da árvore não prestava a mínima atenção em mim.
Eu era nova ali, tive vergonha e a folha ficou no chão.
Dois dias depois, achei um par do mesmo tipo e coloquei no meio do diário.
Elas não eram tão bonitas quanto a primeira que eu vi.
As folhas da Boddhi Tree têm formato de coração. Achei que era licença poética quando uma amiga budista me contou, mas confirmo que não há invenção na história da Thelma. As folhas da árvore sob a qual o Buda atingiu a iluminação (no século cinco antes de Cristo) são uma lembrança de outra forma de conhecimento que precisamos ativar se o que desejamos é compreender o coração profundo da existência.
Olho muito para esta árvore desde que cheguei aqui, há cinco dias. É minha quinta vez na Índia e a primeira em Bodhgaya. Parece que sempre estive nesta cidade, e certamente já não sei mais como será minha vida sem as visitas diárias à planta maravilhosa que fica a menos de quinze minutos do quarto cor-de-rosa que aluguei numa pensão baratinha.
A Boddhi Tree tem um tronco grosso e galhos que se estendem longe, fazendo uma sombra de coisa antiga sobre o chão de mármore de onde se erguem um sem-número de esculturas sagradas budistas – estupas. No perímetro dela, monjas, monges e budistas laicos de diferentes tradições fazem práticas para o Buda Shakyamuni. Há gente se prostrando de corpo inteiro repetidamente. Há gente meditando. Tocando sino. Lendo escrituras. Recitando mantras. Etc.
A Boddhi Tree é a árvore mais bonita do planeta. Pelo menos para mim e possivelmente para estas pessoas que vieram de todas as partes do mundo visita-la. Qualquer aspiração espiritual que eu fizer aqui será muito poderosa, é o que sinto ao sentar-me todos os dias sob ela.
Sento-me duas horas de manhã e duas horas à tarde. Não sabia que seria assim. Vim à Índia a convite para participar de uma exposição de arte budista e acabei enfiada num festival de preces. A exposição que abre na semana que vem está sendo promovida pela Sidharta’s Intent, uma organização sob os auspícios de um lama tibetano-butanês, artista & iconoclasta, que dirige filmes e escreve livros ótimos. Gosto tanto deste lama que anos atrás pintei um auto-retrato inspirado numa foto dele (a foto está aqui embaixo).
Ele está aqui, aliás, conduzindo o festival bienal de preces por dez dias.
É a primeira vez que o encontro e a primeira vez que encontro a Boddhi Tree. Pensando melhor, não sei qual dos dois encontros me deixa mais feliz.
Estudantes de todo o mundo vieram vê-los - a árvore e o lama. É uma procissão matinal de gente carregando colchãozinho de meditação antes do café da manhã. Sento-me sozinha com um caderno que distribuíram aos participantes onde está especificado o roteiro completo da liturgia diária. As preces são recitadas em tibetano e no caderno há uma tradução em inglês.
Costumo me perder depois de dez minutos, então passo o resto das duas horas tentando catar as folhas que caem da árvore.
Enquanto os monges recitam e eu estou perdida, também gosto de ler as traduções.
São preces antigas muito bonitas. Algumas são comuns, tipo pai nosso, que se faz em qualquer ambiente budista. Outras são trechos de escrituras específicas ou mesmo textos que surgiram na mente de um mestre iluminado.
O budismo tibetano é o lugar do maravilhoso, cheio de cores e aspirações mágicas. Há menções a elefantes descidos do céu e aos fatos da vida do Buda. Nas preces também se reconhece que o nosso mundo de hoje é um samsarão sinistro, por isto as orações são súplicas para que os seres que se iluminaram dissolvam a ignorância (a nossa própria e à do planeta) e que o dharma
- ou seja, os ensinamentos que corporificam a sabedoria profunda sobre a existência -
e a compaixão
possam prosperar.
Nosso cantinho de monges e praticantes do budismo tibetano não é o único espaço ocupado na Bodhi Tree. Há gente nos 360 graus em torno dela. A árvore se estende por uma espécie de praça com um templo no meio – o Mahabodhi temple, construído no século 3 a.C.
Aliás: não se pode atravessar os portões da Boddhi Tree com celular, o que é muito maravilhoso. Ninguém filmando nem fazendo selfie nem mandando mensagem. Todo mundo presente.
Vejo monges tatuados. Monjas de óculos escuros cool. Muitos de traje ocre e chapéu vietnamita. Há os da tradição tailandesa da floresta. Vejo alguns monges zen vestidos de preto e vejo também um grupo de monjas com uns hábitos monásticos cor-de-rosa que não faço a mínima ideia de qual tradição representam. Posso dizer o mesmo do grupo que veste hábitos azul-bebê.
Ainda bem que não sou monja de uma tradição que me obriga a vestir azul-bebê até o fim da vida.
Por outro lado, confesso que estar aqui é observar a ressurreição do meu desejo de vestir bordô com amarelo. As roupas mais bonitas são as roupas monásticas das budistas tibetanas e uma parte de mim deseja virar monja, ou lembra do que é ser monja. Não sei, é um desejo de voltar para casa, e minha casa fica num continente chamado
dharma.
Se estivesse aqui comigo, meu marido diria
- Mas você já é monja, Suri.
Discordo, Lee. Digo-lhe mentalmente que não, que não é a mesma coisa, que tudo que eu quero é ficar embaixo dessa árvore desejando que coisas boas aconteçam para todos os seres. Só quero ficar aqui descobrindo em que consiste esta palavra chamada despertar ou iluminação; como ela se manifesta no meu corpo e para além dele.
O lama fala sobre fazer aspirações e eu lembro que aspirações embaixo desta árvore são muito poderosas.
Devo aspirar minha ordenação monástica?
Já que não deu pra ser monja ordenada nesta vida (por enquanto), que pelo menos todas as minhas respirações sejam úteis ao dharma. Aspiro que a afirmação do Lee seja verdadeira.
É muito bonito o Buda ter se iluminado embaixo de uma árvore que hoje fica na região mais pobre da Índia.
Pensemos por exclusão. O Buda poderia ter se iluminado num palácio, ou poderia ter se iluminado num templo. Ele poderia te se iluminado em casa, mas ele se iluminou sob uma criatura singela e poderosa
: uma árvore. E hoje, 2500 anos depois, o templo budista mais importante do mundo
o principal centro de peregrinação
é um templo a céu aberto que respira
e é cheio de folhas de coração penduradas no alto.
A Boddhi Tree é um templo aberto pra todo mundo, incluindo os cachorros sarnentos que estão ali ao nosso lado escutando as mesmas preces. Tenho certeza que os ensinamentos penetrarão o fluxo de consciência desses cães e se tudo der certo eles serão as pessoas que cantarão as preces na próxima geração.
Viva o budismo, que está muito à vontade com elefantes que descem do céu e cães aspirantes a monge.
Sob a Bodhi Tree, quilômetros e duas guerras me separam de Portugal. Da última vez que estive na Índia, tive que voltar às pressas antes do previsto porque uma pandemia recém-descoberta foi cancelando de surpresa os vôos de retorno dos turistas. Tive muita sorte; meu avião foi o último da Turkish Airlines que partiu. Os que vinham depois foram cancelados.
Hoje sei que tudo pode acontecer.
Hoje também sei que estou feliz. Todos os dias sob a Boddhi Tree há gente fazendo votos benevolentes dirigidos a todos os seres, e isto me dá alegria, bem-estar, isto me dá esperança
e descanso. Não sabia que era tanto. Não sabia, mas eu precisava mesmo vir aqui, sentar sob esta árvore,
eu precisava de esperança, eu precisava muito de esperança
e descanso.
Notinhas
O lama que está conduzindo o festival de preces chama-se Dzongshar Khyentse Rinpoche e escreveu livros maravilhosos como este daqui - O que não faz de você budista (publicado no Brasil pela editora Lúcida Letra).
Já escrevi sobre a vontade de ser monja aqui, numa outra edição do Sofá da Surina.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Seu texto também me permitiu achar esperança e descanso.
Obrigada, Surina!
eu não sei o que mais me deixou feliz lendo essa palavras: se a alegria de saber que existe um lugar onde tanta gente está presente (sem celular) ou se a imagem do cachorro monge. as folhas e o lama decoraram tão bem essa felicidade ♥️ boa viagem, monja das letras