Sou a única pessoa ocidental neste minúsculo aeroporto em Patna. Aliás: sou a única mulher ocidental sozinha aqui.
Já percebi que sou novidade, só não sei quanto. O que sei, sim, é dos homens e mulheres que fixam os olhos nos meus e vão descendo as órbitas em modo scanner pelo vestido azul marinho comprido e sem mangas até chegar aos meus pés de all star. Reparo os olhares, faço contato visual, fico sem entender direito o que está acontecendo, ninguém desvia o olhar.
As pessoas me olham, simplesmente.
Não me sinto particularmente incomodada.
Estou muito alucinada para me incomodar com qualquer coisa. Primeiro foi a dor de barriga. Em cima dela, uma gripe que piorou ao longo das três horas de ar condicionado dentro do táxi que me trouxe de Bodhgaya até aqui.
Agora, no aeroporto, temos um outro ar condicionado inescapável saindo de turbinas barulhentas que devem ter sido instaladas no século XVII. O monitor não informa notícias do meu voo. Um monge dorme esparramado na cadeira. Outro recita textos sagrados em tibetano ao lado de um homem que lê o jornal em hindi.
A mulher à minha frente na fila do embarque veste um conjunto em algodão puro cor índigo e tem os cabelos grisalhos presos num coque bem feito. Será que é escultora? Intelectual? Bailarina? A graça com que aquela mão de pele marrom escura apresenta o cartão de embarque à funcionária da companhia aérea reflete de volta a elegância que me falta
: ela, a síntese de um povo que nos legou o sânscrito, a yoga, técnicas de respiração, o hábito de tirar os sapatos ao entrar em casa
: eu, uma menina mal-humorada calçando um imundo all star com estampa de tigrinho.
Ela, a paciência graciosa que espera sem ansiedade o vôo atrasado no aeroporto de Patna.
Eu, a irritação de quem quer ir embora deste lugar o mais rápido possível.
Ela, nirvana.
Eu, samsara.
Nós duas no mesmo lugar.
Como assim, aeroporto de Patna?
Como assim, estou indo embora da terra do Buda?
Quando o táxi entrou em Bodhgaya no meu primeiro dia desta viagem, a menina polonesa que dividia a corrida comigo apontou os muros do templo onde fica a boddhi tree:
-Bodhgaya é assim: dentro do templo é o céu, do lado de fora é o inferno.
Achei o comentário terrível. Afinal de contas, a gente pratica para estender os ensinamentos do templo para a vida, não para separar o mundo em dois.
Uma outra parte minha, entretanto - uma parte menos bonita e mais sincera - reconheceu que havia algum valor na fala dela.
Bodhgaya fica no estado de Bihar, o mais pobre da Índia. Esta é a minha quinta passagem por este país e a primeira por Bihar. Em 2019, por exemplo, fiquei quatro meses viajando sozinha de mochila e busão.
Cada visita é diferente, cada nova cidade que conheço tem seu charme, mas posso dizer que todas a vilas indianas por onde passei tiveram uma habilidade especial de me aquecer o peito.
Em Bodhgaya meu coração foi arregaçado. Peço desculpa pelo uso da palavra feia, mas é a única que achei para fazer justiça aos meus encontros cotidianos com
as crianças que pedem esmolas e com os cachorros cheios de feridas expostas
as vacas magras
e as cabras acorrentadas. Uma cabra linda, grávida, me olhou todos os dias na saída do restaurante, e tudo que eu queria era levá-la de volta comigo para Portugal.
Minha tradição ensina que a realidade é uma projeção da mente. Como acontece com qualquer ensinamento, somos instruídos a receber este enunciado com todo o corpo - não apenas intelectualmente. Ou seja: devemos escutar, contemplar e meditar pelo tempo que for necessário até que a compreensão seja absorvida e se torne nossa. Só quando o enunciado vira experiência é que se pode, enfim, dizer com confiança: olha só. Isto que estou vendo é uma projeção da minha mente, e não um registro definitivo da realidade.
Mas voltemos ao ensinamento mente/realidade. Aparentemente simples, ele na verdade tem muitas implicações. Uma delas é: se a realidade é projeção da mente, então devo trabalhar com a minha dimensão mental se desejo enxergar de forma mais ampla o que está diante de mim.
E qual é o meu estado de mente em Bodhgaya?
É um estado de sofrimento. Minha mente vê o que se passa aqui com sensibilidades de samsara.
Tenho muito a aprender.
Tudo me parece triste, tudo me parece doloroso quando estou do lado de fora dos muros do templo de Bodhgaya.
Passei dez dias ajudando a montar uma exposição de arte budista e participando paralelamente de uma temporada de preces sob a bodhi tree. Foram dez dias imersa embaixo da árvore. A exposição fechou no mesmo dia em que o festival de preces chegou ao fim.
Assim que tudo acabou, fui convidada para uma festa vip de encerramento num hotel cinco estrelas. Comprei pulseiras douradas, dancei, um cantor japonês famoso se apresentou num quimono amarelo, houve uma performance incompreensível de um artista indiano e um cara remixando mantra com música eletrônica. No dia seguinte, todos o que estavam participando dos eventos foram embora e a cidade ficou
vazia. Alguém me contou que o pessoal decidiu esticar a viagem e receber ensinamentos de um monge famoso no norte. Sem as preces em grupo sob a bodhi tree, as ruas de Bodhgaya se tornaram uma visão apocalíptica. Voltando pra casa no fim do dia, notei que a fumaça de poluição estava mais grossa, e meu corpo
também. Primeiro caganeira, agora a tosse, o cansaço, a fuligem, o catarro saindo cinza
: voltei pro quarto cor de rosa da guest house e liguei pro meu marido para anunciar que foda-se, eu ia remarcar a passagem, ia voltar pra Portugal
sei que é caro e que parece loucura mas não aguento mais
quero meus gatos quero minha casa quero minha cama quero a chuva.
Ainda bem que ele não pegou o telefone.
Deixei um áudio no WhatsApp.
Mensagem do Lee, uma hora depois:
Suri, você esperou tanto tempo pra viajar de novo pra Índia. Procura outro cantro, sei lá, vai fazer uma caminhada ou massagem.
Ele tem razão. Não faz sentido permitir que o meu samsara momentâneo me afaste do país dos meus sonhos.
Existe um lugar na Índia onde me sinto em casa. Fica ao sul, é uma vila sagrada no estado de Tamil Nadu.
Um longo caminho separa Bodhgaya de Tamil Nadu: dois táxis com um voo no meio. O primeiro táxi me leva para o aeroporto de Patna e eu assisto por 4 horas a procissão de miséria de Bodhgaya se expandindo por outras cidades e vilarejos ao longo da rodovia que corta o estado de Bihar. Vejo um rio-esgoto, e dentro dele pessoas se banhanho no rio-esgoto. Há um sem-fim de casas, nenhuma terminada, todas pela metade
os animais em penúria
e no meio de tudo, uma paisagem exuberante de vegetação tropical. A região de Portugal onde vivo é seca. Aqui é tão verde, tão rico
tão pobre. Nada nunca será perfeito, penso. Por mais que a gente tente, é sempre assim: falta algo, sobra algo.
Samsara e nirvana, diriam os budistas, estão dentro de quem olha. A realidade é uma projeção da mente, lembra?
O avião pousa em Chennai, durmo uma noite num hotel barato e no outro dia acordo com uma batida na porta às seis e meia da manhã. O taxista que vai me levar para a minha destinação final - a pequena vila de Tiruvannamalai - chegou mais cedo do que tínhamos combinado. Estendo-lhe a mão:
-Bom dia, meu nome é Surina, e o seu?
Estou mais calma depois da noite de descanso. Os três últimos dias foram delirantes; agora parece que eles nunca aconteceram. O vendaval dentro de mim estáse afastando; minha mente já começou a criar outro mundo. O motorista veste uma camisa de algodão estilo indiana branca, aperta minha mão e anuncia um novo começo.
Deixei a terra do Buda, mas continuo firme nos deuses e promessas de libertação. Ele responde meu cumprimento e se apresenta:
- I am Shiva. Are you ready to go?
Notinhas
A partir de agora, os Diários de Bodhgaya serão escritos de Tiruvannamalai. Por questões estéticas, vou manter o título Os Diários de Bodhgaya até o fim da viagem, tá bem? Se alguém tiver alguma ideia melhor, por favor me ilumine nos comentários!
A exposição de arte budista em Bodhgaya me trouxe influências e abriu novas percepções sobre a minha própria obra visual. Uma novidade legal é que pinturas minhas estão ocupando paredes em duas casas no Butão (!). Além de outros países, elas também foram para compradores na Dinamarca e na África do Sul, dois lugares onde eu ainda não tinha chegado.
Outra novidade é que decidi chamar a minha obra visual de dharma art. Foi uma decisão orgânica que surgiu como consequência do que eu já venho fazendo. Mesmo assim, foi importante, porque costura o meu trabalho numa linha de sentido mais ampla ao mesmo tempo em que aponta a direção que quero continuar seguindo neste momento.
A tempo: dharma art faz referência ao meu objeto de investigação na pintura, ou seja, o dharma - os ensinamentos espirituais das religiões contemplativas como o budismo, por exemplo.
Foi mal, mas a Índia é intensa e todas as minhas leituras no momento são budistas hardcore. Acho que ninguém vai se interessar, então retomo minha curadoria de recomendações quando estiver de volta à rotina.
… e uma notinha sobre o Sofá da Surina
Já faz quase um ano que transformei esta Newsleter num projeto semanal. Foi uma decisão maravilhosa que transformou radicalmente minha escrita, me aproximou dos leitores e me disciplinou a escrever mesmo quando estou viajando.
Se você lê as edições regularmente, considere apoiar o Sofá pagando um chai para a escritora aqui na Índia. Cada edição que você recebe demora de 6 a 8 horas para ser redigida todas as semanas e por enquanto desejo que ela seja gratuita, semanal e acessível pra todo mundo. Afinal de contas, este Sofá também é um projeto de dharma art.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Respiro primeiro.
Acabei de voltar da Índia. Foram 30 dias em Rishikesh e um diário de bordo difícil de escrever.
Eu não sei como cheguei aqui, mas já estou à vontade e vou voltar no botão "subscribe" pra te acompanhar diretamente de algum templo budista de Pai, na Tailândia.
Obrigada por dividir com profundidade e intensidade sua experiência.
Uma inspiração ou duas.
Meu Deus, que intenso! Tudo é tão intenso na Índia... O taxista se chamar Shiva foi o máximo, sorri e suspirei aqui na minha cadeira. Já vi algum documentário sobre Tiruvannamalai, acho que com Mooji... Ah... Ufa, tomara que seja tranquilo, restaurador e seus dias iluminados! Com amor e muita torcida!