#58. Os Diários de Bodhgaya, 4
Revelações, Parvati Baul e outras imagens da minha quarta semana na Índia
Revelação
Acredito profundamente que a Índia é um lugar mágico na face da Terra e que as experiências acontecem aqui com a força da revelação.
Termino de tomar chai numa barraquinha concorrida em frente ao ashram mais importante de Tiruvannamalai. Estou pronta para minha meditação diária. É fim da tarde, todo mundo na rua, ao atravessar percebo o movimento imprevisível dos tuc tucs barulhentos, as panelas fritando bolinho no azeite passado, as placas de massagem ayurvédica para turistas e sei que todas estes fenômenos familiares são
aparências. Saris coloridos e poças de água transbordando lama não deixam de ser o figurino de uma Índia que prefere se disfarçar de mil jeitos enquanto guarda segredos valiosos embaixo da casquinha. A Índia diz
: você tem que me
atravessar.
Um fantasma sem corpo que aceita tudo, paredes e outdoors e anúncios de abacaxi, caminho como alguém que se abre à
revelação
sem saber exatamente como ela virá.
Mas a revelação sempre vem. Na Índia, a revelação sempre vem.
Conceitos
Será que troquei meu elã espiritual pelo conforto? Acostumada a ficar em pensões baratas de parede laranja-cor de rosa-turquesa e a pegar ônibus de baixíssima qualidade que quebram-têm goteira–nunca chegam à destinação, sinto vertigem ao olhar em volta de mim em Bodhgaya.
Estou num hotel 5 estrelas e este é o lugar mais improvável em que já estive nestas cinco passagens pela Índia. Sinto-me terrivelmente artificial. Tudo neste prédio é tão limpo e branco e cheio de luzes indiretas que me soa
fabricado. A festa de encerramento do festival budista no qual expus as minhas pinturas é só para um punhado de convidados e não sei exatamente o que estou fazendo aqui.
O lama que dirige a organização à frente deste evento está sentado num sofá no hall de entrada. Veste roupas bordô típicas do budismo tibetano. Um milagre que esteja sozinho, ele é um professor famoso, uma espécie de rock star entre os lamas contemporâneos. Tem um prato no colo, come uma coisa qualquer, sabe-se lá onde estão os assistentes, olho pra ele, que não sabe meu nome nem olha de volta
não se apegue a conceitos
, diz. Escuto, juro que escuto. Sei que o que ele diz é verdade. Depois entro na fila para pegar uma das 8 modalidades de comida.
É tudo tão excessivamente suntuoso que perco a fome.
Não se apegue a conceitos
, ele repete.
Engulo o pastelzinho chinês vegetariano.
A santa misteriosa
No segundo andar, um cantor japonês solta a voz numa versão incompreensível do Sutra do Coração ao mesmo tempo em que os convidados aproveitam a chance para fazer contatos com outros convidados ilustres que não tenho a mínima ideia quem são. Minha amiga artista indiana agarra minha mão por trás e sai me arrastantando
gente, preciso conversar com ela, vem comigo
na direção de uma convidada de roupa laranja. Quem é a mulher tão cobiçada?
Ela é especialmente bonita de perto. Hipnoticamente bonita, vê-se que é especial. Tenho que fazer esforço para tirar os olhos dela. É impossível saber a idade – 30, 50, 60 anos? A mulher veste um sári laranja de algodão sem enfeites e leva um cabelo de dreadlocks que avança até os tornozelhos.
Roupa laranja & dreadlocks = marcas dos santos indianos, os sadhus ou swamis, aqueles que renunciam ao samsara.
Será que é uma santa? Já fico curiosa: uma santa mulher. Ela conversa com a minha amiga, está cansada, é claramente uma celebridade, noto que a sua presença emana um tipo de doçura selvagem. Sem entender nada - elas conversam em hindi -, entendo pela ternura que aquela mulher atravessou o infernos e o céus, alcançou a equinimidade em relação a ambos e agora
escuta minha amiga. Está cansada mas não impaciente; falta-lhe a expressão da agressividade, e tudo isto dentro de um corpo imprevisível que nunca, jamais obedecerá qualquer convenção
social.
Dela, posso esperar qualquer coisa. Uma palavra de carinho ou uma provocação.
Ela não está num monastério. Pelo menos não agora. Esta mulher santa e selvagem está no jantar do hotel cinco estrelas.
Diwali
A Índia está em festa. Volta e meia passa um caminhonete enfeitada de flores tocando Om Namah Shivaya em looping. Todo mundo na rua. As meninas pequenas estão vestidas de roupas de tule feito bailarinas e os meninos vestem camisas por dentro da calça jeans.
Hoje começa o Diwali, o festival indiano que celebra a vitória das luzes sobre as trevas, do bem contra o mal, da iluminação sobre a ignorância.
Parvathy Baul
-Quem é ela?
, perguntei à amiga artista assim que deixamos a imediação da mulher sagrada.
-Gente, Surina, que pergunta é essa?
Parvathy Baul, diz minha amiga, é a detentora de uma linhagem baul muito importante. Claro que não sei o que linhagem baul significa, por isso pergunto à minha amiga e mais tarde ao Google, para descobrir que Parvathy Baul é a detentora de uma antiga tradição mística de poetas e músicos, portanto suas práticas espirituais (secretas, transmitidas por tradição oral) envolvem tanto as técnicas de conhecimento do corpo-mente (meditação e yoga) quanto práticas poéticas e musicais.
Descubro que ela tem um ashram em Bengal.
Rolo o site do ashram e vejo um lugar incrivelmente bonito e simples, então clico num vídeo do YouTube no qual ela canta em êxtase e não preciso de mais explicações.
Alice Munro
Fiz um monte de compras nesta viagem, a maior parte delas imprevisível. Em plena Índia, segui os conselhos da Fabi Guimarães e comprei meia dúzia de livros de contos da Alice Munro, uma escritora canadense que ganhou o prêmio nobel de literatura em 2013.
Numa entrevista ao The Guardian, Alice fala sobre a doença da mãe e sobre sua decisão de casar-se aos vinte anos como um meio escapar voluntariamente do papel de cuidadora. Casar significava sair do interior. Mesmo com a domesticidade matrimonial, teria mais possibilidades de se dedicar à escrita.
Pela entrevista, parece que foi uma decisão dolorosa. Moralmente, Alice desejava cuidar da mãe, mas a verdade do seu destino se impôs, e a verdade do seu destino era o que ela desejava e não o que as expectativas morais diziam. Ela tinha um universo interno imenso e para vivê-lo precisava
escrever.
Precisamos cuidar do nosso universo interno. Precisamos muito cuidar do nosso universo interno. Precisamos prestar atenção às vozes que falam de dentro numa língua que a gente conhece mas não exercita. Precisamos cuidar dos nossos rabiscos inúteis no caderno de rascunho e dar-lhes chance de crescer, e precisamos escolher a inutilidade absoluta em vez da produtividade
pelo menos uma vez por semana. Mas é fácil deixar de lado aquilo que é tão intagivelmente nosso por conta dessas convenções que a gente respeita demais.
Sou da linhagem da Alice Munro, embora ela provavelmente nunca saiba disso. Os livros e a fala dela me devolvem a mim. Não sou a única assim, penso,
olhando para esta montanha silenciosa que acredito ser a encarnação de Shiva
e para as folhas que guardei da árvore onde tenho certeza que o Buda se iluminou às dois mil e quinhentos anos
viajando sozinha e sem filhos
absolutamente inútil
numa vila que quase nenhum amigo conhece.
Desculpem pelo atraso - esta semana a Newsletter chegou no domingo em vez do sábado.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Fiquei arrepiada com a Parvathy Baul cantando. 🤯
Feliz que você esteja amando Alice, ela é incrível! Amando ler sobre essa viagem também. Beijos