Comecei o dia querendo escrever uma edição curta para falar de amor. As fantasias do amor são inúmeras e caímos em todas, mesmo sabendo que são as armadilhas mais antigas do mundo,
mas não era desta parte do amor que eu queria falar. Queria falar sobre o fim. Queria falar sobre o que acontece quando de repente o amor ou o casamento (que tantas vezes representa o ápice do amor) acabam.
Para mim está sendo ruim, não consigo achar outra palavra. Dá uma sensação de solidão e de abandono. Não sei se pra você é igual. Pra mim, dá. E quando essa sensação acontece, fica tudo parecendo um deserto
, um grande deserto. Aqui no Alentejo é ainda pior, porque o verão se aproxima
e nunca mais choverá. Nos próximos seis meses haverá calor, a grama secará
deserto é o meu coração
e esta solidão desértica, sabemos bem: só eu poderei atravessar.
É uma solidão dura. Sei que ela é boa. No fundo, sei que é importante ter a experiência de estar sozinha, completamente
sozinha. O que vou encontrar lá?
Talvez dentro da solidão haja um ensinamento bonito e transformador. Este tipo de ensinamento possivelmente está localizado depois da região do desespero, mas agora me pergunto se haverá vestígios de sabedoria mesmo no interior da mais tenebrosa aflição. Coloco-me algumas perguntas
importantes. Por exemplo: será que dá para ser feliz e triste ao mesmo tempo?
Será que é possível ter momentos felizes e ainda assim (ainda assim) aceitar que este faz parte também um momento de tristeza maior? Emoções têm tamanho? Será que um sentimento tem que parar de existir para outro acontecer? Ou será que eles podem estar juntos - um dormindo e o outro acordado -, se alternando, em turnos?
Hoje de manhã tomei café com leite chorando na varanda e de repente comecei a ouvir os passarinhos. Antes não havia muitos aqui, mas agora há. E eles cantavam.
Naquele momento, esqueci da tristeza e fiquei só com os passarinhos.
Mas isso também passou. Aí tomei mais um gole de café com leite, chorei e fui lavar a louça.
Também há o tema das outras formas de amor. Algumas formas de amor ficam mais realçadas quando o casamento acaba.
O amor da minha amiga alemã que manda mensagens toda semana perguntando como estou agora.
O amor daquelas que me fizeram comida e deram banho na convalescença da cirurgia.
Uma amiga que enviouvou cedo disse é assim mesmo. Eu tinha crises de choro nos lugares mais improváveis. Eu nem viúva sou, mas ela respeitou minha dor e a minha separação como se fossem luto, e isto também é uma forma de amor.
Existe aquela amiga que visita toda quinta-feira depois da yoga. Tomamos o mesmo chá e ela me ouve reclamar das coisas de sempre muito pacientemente.
Existe o amigo que já se divorciou duas vezes e conhece quase tudo do mundo. Ele me liga enquanto caminha para a academia, e aí, o que tá rolando agora?
Existem os meus três gatos que passaram a dormir comigo. O mais velho não me tolera muito, mas ele também tem sua forma de amar. A forma de amor dele é dormir sobre o edredon no maior calor enquanto eu passo a noite me mexendo. Quando acordo, olho em volta. Ele continua
lá.
Ninguém passa os dias comigo. Não há ninguém fazendo projetos comuns aos meus. Ninguém para dividir a faxina ou as compras.
Essas coisas todas, sou eu mesma que faço.
As pessoas aparecem de relance, ficam um pouco. Mandam mensagem, perguntam se estou bem, depois vão embora.
Elas são como os passarinhos.
Será que os maridos também não são como os passarinhos?
Será que não fui apenas eu que imaginei que um casamento é como a Arca de Noé? Quando o dilúvio vier, você estará protegida
salva
do mundo alagado.
Mas não é assim. Ninguém fora de mim é capaz de proteger meu coração
desabrigado.
Estou à procura de um guarda-chuva interior para proteger o meu coração das tempestades.
Encontrei três guarda-chuvas com estampa de dharma para me acolher no vendaval:
1) Thich Nhat Hahn propõe um exercício. É assim: abrace uma pessoa. Fique inteiramente presente naquele abraço por três respirações, depois deixe estar. Sua presença verdadeira é o amor mais genuíno você pode oferecer a alguém. E isto é tudo.
2) Uma vez encontrei pessoalmente minha musa - uma monja que vive lá nos Himalaias. Ela me concedeu um encontro de uma hora. Para não desperdiçar tempo, levei todas as minhas perguntas escritas num caderninho; ela respondeu uma por uma. Senti que éramos antigas amigas, e depois que parti senti saudades. Ela passou uma hora comigo, mas estava tão presente que foi como se fosse uma vida toda.
3) Avalokiteshvara, o senhor da compaixão, tem mil braços. Em cada uma das mãos ele tem um olho. Avalokiteshvara sabe que não pode fazer nada no meu lugar, afinal de contas este coração e este destino são só meus. Mas ele pode olhar, sei como é. Às vezes é tudo que de que precisamos.
Seja lá o que te aconteça, estou presente. Eu te vejo. Fique tranquila. Siga em frente. Estou aqui.
Dizem que os olhos de Avalokiteshvara são sabedoria. Para mim, eles são a forma do amor.
Notinhas
Neste mês de maio, as edições do Sofá foram temáticas e giraram em torno do tema Olhar. Na primeira edição, escrevi sobre o olhar suave de um desconhecido que adquiriu algumas das minhas pinturas. Semana passada foi a vez de dividir com vocês o processo de criação de uma pintura do Buda Amithaba, e desta vez falei do olhar do outro como amor.
Todas as ilustrações que estão no Sofá da Surina são obras minhas e estão à venda (original e prints). Detalhes por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
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Últimas vagas para a oficina de Escrita Reconectiva
Ainda há três vagas para o O Atelier de Escrita Reconectiva. O atelier será um espaço para escrevermos juntos, em sessões curtas (trinta minutos) e com consistência - 4 vezes por semana, pelas manhãs. O atelier começa no dia 30 de maio e entra pelo mês de junho.
O curso acontece online pela plataforma zoom e você pode se inscrever aqui.
Atelier de Escrita Reconectiva
30 maio - 27 de junho
8 - 8:30 da manhã (horário de Brasília) - online e ao vivo pelo Zoom.
Ah! E que você seja feliz, sempre. Até a próxima,
lindo, me tocou muito. ontem escrevi num caderninho, em frente ao mar e o pão de açúcar, que desejava a chegada do tempo que certa pessoa fosse apenas uma memória vaga e não uma sensação dolorida no corpo. enquanto isso, estava feliz em ver o mar e o pão de açúcar. os sentimentos são uma matéria curiosa mesmo, coexistem, a gente que vai aprendendo a manejar a chegada deles...beijo!
Aii amo essa série de ilustrações! Quando eu separei, chorava todos os dias, parecia q a dor não ia ter fim, não fugi, senti, senti muito, era como estar em uma caverna escura, sozinha, cavando, cavando; daí um dia a luz entrou, no tempo dela, cheia de possibilidades. A solidão continua aparecendo, é dura, mas passa; a maior parte do tempo a solitude é presente, ouvindo passarinhos e reconhecendo amor no que é sutil. Tão lindo seu texto… sei como é e estou aqui 🤍