Eu chamo de vale-bruxa. Todos os anos vou atrás de alguém para ler meu mapa astral. Há quem goste de se mimar num spa, comprando uma roupa especial, jantando num restaurante caro. Meu luxo são as consultas astrológicas.
Às vezes passo anos fazendo leitura com a mesma pessoa, mas depois de algum tempo procuro recomendações de astrólogas que ainda não conheço. Acho saudável circular o mapa por diferentes bruxonas. Vou e volto entre oráculos; com o passar dos anos as astrólogas acabam virando amigas.
É uma relação bonita: cada leitura da carta natal traz uma nova perspectiva sobre a minha personalidade e anuncia possibilidades de transformação reveladas não só a partir das estrelas como também do modo como a pessoa do outro lado as vê.
Apesar das diferentes abordagens, uma cena se repete toda vez que alguém recebe meu mapa pela primeira vez. Socorro, mulher. O que é isso aí na tua casa oito?
Não sei explicar precisamente, mas parece que meu mapa astral tem um bololô de grande envergadura na casa 8. No meu caso (ascendente em Áries), esta casa oito fica no signo de escorpião. Ui ui ui.
Já sei deste emaranhado faz tempo. Mamãe, primeira astróloga da vida, quis me preparar quando eu ainda era pequena: filhota, seu mapa é todo lindo, mas você tem uma configuração astrológica trágica. Lamento. Você vai perder, vai perder tudo, muitas vezes, sempre de um jeito súbito e terrível.
Pergunto-me agora se é verdade, isto, da minha tendência inevitável a perdas. Questiono se perder constantemente é uma terrível condição da minha vida, em particular, ou se perder é algo que acontece a toda gente. Quero saber se a enormidade da perda é só uma percepção que tenho, já que estou no centro da minha própria experiência, ou se todo mundo que perde sente a partida daquilo que ama através de uma lente exagerada. Tipo: por que comigo, meu Deus?
Sou só eu, ou será que os outros também desejam uma casa quentinha, gatos e uma cozinha equipada? Sou só eu, ou será que todo mundo quer um porto seguro, morrer dormindo sem dor, ter uma vida excitante e ao mesmo tempo sem rupturas dramáticas?
Sou só eu, ou todo mundo faz tudo o que pode para evitar a dor e não perder aquilo que lhe é querido?
Do sofá de casa, assisto o mundo desfilar. As amigas vêm e vão para me cuidar. Ainda não consigo sentar - desde ontem a parte de baixo da barriga começou a doer. Não consigo amarrar os sapatos nem pensar direito. Estou com anemia e ainda não dá para tomar ferro.
Cirugia-trauma-hemorragia-separação.
Quinze dias.
As amigas chegam com uma sacola de brócolis e ovo debaixo do braço. Cozinham, passam aspirador, fazem fogo na lareira, até amanhã, batem a porta e vão-se embora levando as roupas de cama para lavar. Aqui é silencioso. Fico sozinha com os gatos e com este espaço enorme onde nada é garantido. Este espaço tem um nome, este espaço se chama
perder.
Perder é difícil. Perder é uma paisagem aberta onde não há sequer uma cabaninha de dois por dois para a gente se proteger. A Perda me lembra vastidão sem árvores num dia de inverno e ventania.
Perdi tudo. E agora, onde agarrar? Onde está o futuro? O que fazer? Quem me dá garantias, o que me dá estabilidade, onde está o conforto quando aquilo que era certo sumiu?
A estabilidade está na mente. A ideia de que estava em outro lugar foi só um delírio momentâneo da sua imaginação, querida,
o Buda me corrige da mesa de jantar, sentado com um xícara de café com leite e um bolinho de fubá.
Obrigada, Buda. Obrigada Tathagata.
Verdade. A perda é uma senhora de péssima fama no mundo humano. De certa forma, consola-me lembrar que não sou a única e que perder é condição inerente à vida. Perderemos tudo, baby. Eu e você. Com bololô de casa 8 ou não, perderemos
os nossos corpos.
os nosso gatos
as plantas, os livros
se duvidar, você já perdeu até aquele feijão que ficou fora da geladeira.
Oi, tudo bem? Senta, vem tomar um café com leite. Tá foda viver nesta casa com você, Perda. Mas já que você empacou aí, conta – o que você tem pra dizer?
Verdade tudo, vamos ser sinceras e remover os panos quentes. Perder é um horror. É mesmo. Uma merda. Mas perder faz a história do livro ficar boa. Perder é uma das muitas forças que faz o mundo girar. Se eu pudesse, não escolheria perder. Não escolheria perder, jamais. Mas quando perco bastante, também abre um espaço enorme, esse aí do inverno e da ventania. Agora não tenho mais onde agarrar. Agora tenho a mim mesma. O espaço. E a estrada aberta.
Comecei a escrever um livro novo. Viver começa a fazer sentido de um outro jeito. Novas possibilidades aparecem mas ainda as desconheço. Não sou mais a mesma. Quero descobrir em que vou me transformando. É isso: quando não há cabana para parar, há estrada. E isso já diz muito.
Quanto tudo se desfaz
“Quando tudo se desintegra, somos submetidos a uma espécie de teste, e também a um certo processo de cura. Achamos que o sentido está em passar no teste e superar o problema, mas a verdade é que as situações não têm uma solução definitiva. Elas se compõem e desmoronam. E mais uma vez se compõem e desmoronam. É simplesmente assim que funciona. O processo de cura ocorre ao deixarmos existir espaço para que tudo isso aconteça: espaço para o luto, para o alívio, para a angústia e a alegria.
Pensamos que algo vai nos trazer prazer mas, na verdade, não sabemos exatamente o que vai acontecer. Achamos que algo vai nos trazer infelicidade, mas também não sabemos. Acima de tudo, o mais importante é deixar espaço para o não saber. Tentamos fazer aquilo que achamos que vai nos trazer alívio, mas é impossível ter certeza. Nunca sabemos se vamos nos sair muito bem ou se vamos falhar redondamente. Quando sofremos uma grande decepção, não sabemos se chegamos ao fim da história. Esse pode ser, simplesmente, o início de uma grande aventura.”
* Trecho de Quando tudo se desfaz, da Pema Chödron. Este livro (que aparentemente era o preferido do Lou Reed e da Laurie Anderson!) foi publicado no Brasil pela editora Gryphus. Você pode ler o segundo capítulo gratuitamente aqui, no site d’O Lugar.
Notinhas e recomendações
Estou adorando ler os textos escritos pelo João Varella - autor, editor, livreiro e fundador da editora Lote 42:
Você está em Curitiba? Dia 22 de março às 15h30 tem lançamento da Revista Júlia, publicada pela editora Arte & Letra. Não estarei presente, mas meu conto "Contato Imediato” está lá, sendo publicado, e o lançamento vai ser na livraria da Arte & Letra, que é linda.
Lalai Persson, editora de uma das minhas newsletters preferidas (a Espiral!) falou sobre o 108 e sobre O mundo sem anéis no podcast Salvei. Ela é maravilhosa, a entrevista tá linda e você pode ouvir aqui.
Todas as pinturas que ilustram o Sofá são obras minhas e estão à venda (originais e prints). As prints são produzidas em estúdios bem especiais seguindo os padrões de galerias e colecionadores, depois assinadas em tiragens limitadas. Entregas para o Brasil e para a Europa. Detalhes e encomendas por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
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Ah! E que você seja feliz, sempre. Até a próxima,
Oi, Surina. Sou leitora da sua newsletter, uma das minhas preferidas que chega ao meu e-mail. As coisas que você escreve me tocam de um jeito diferente, comecei até a me abrir para o budismo e seus ensinamentos. Enfim, sou astróloga tradicional e se nessa variação de astrólogas quiser me conhecer, fica aqui meu convite. Fiquei curiosa! Beijo!
Ah, obrigada pela menção do podcast e da espiral... <3 E, por aqui, enviando sempre boas vibrações para você melhorar.