Lembro como se fosse hoje.
O dia ensolarado de inverno, gelado e brilhante, em que sentei com um colega do doutorado no alto de uma montanha nos arredores de Genebra. Entre uma xícara e outra de cappuccino no Café du Salève, o indiano que era celebrado como uma promessa da antropologia internacional dava bola pra mim, latino-americana mais velha do que ele e fora da curva naquele universo suíço de acadêmicos bem-comportados.
Ele vestia uma blusa de cashmere azul marinho em cima da camisa azul-bebê. Eu tinha cabelo mais curto que o dele e leggings peludas com estampa de zebra. Ele usava sapatos sociais com fivela prateada, óculos Transitions que escureciam quando batia o sol e uma bolsa de couro marrom cheia de perguntas quebra-gelo para intelectuais sem assunto:
- Se pudesse tomar um café com qualquer pessoa deste mundo, quem você convidava?
A pergunta me pegou sem ideias e com muito tédio.
O meu colega por outro lado só tinha animação. Seu primeiro candidato era Michel Foucault. Ele agora só euforia, chamando a garçonete para mais um espresso. Em segundo, bem mais longe na lista, Camus. Também tinha Derrida, se não me engano, e Deleuze.
Pensando agora, aquele menino tinha vontade de conversar com a intelligentsia francesa inteira
, exceto pelo Freud, que também entrou no top five:
- Não tem como deixar o Freud de lado, né?
Havia um monte de assuntos que ele precisava discutir com aqueles caras. Toda a questão das genealogias foucaultianas e da sociedade de controle - como Michel via a microfísica do poder agora que os celulares tinham chegado? O café dos dois ia emendar com a noite e virar vinho, talvez até rolasse um clima, sabe, um dia cheguei a desconfiar que estava apaixonado pelo Foucault, foi super awkward, o menino com a xícara de pingado na mão já estava bêbado só com a possibilidade de um romance, um jeito colorido de contar que só podia ser isso
: verdadeiro.
Achei aquela conversa chata e interminável. Mas a alegria genuína do menino era fascinante. Imaginando o inimaginável, ele já habitava um pouco aquela conversa que nunca teve com o historiador-filósofo-pensador-visionário francês.
Enquanto ele falava e tomava café, cada vez mais selvagem por trás da respeitosa blusa de cashmere, eu pensava na capacidade do cérebro dele para processar pensamentos complexos. Meu colega tinha um prazer doido em passear por labirintos sinuosos onde ideias altamente elaboradas se encontravam sem chegar a nenhum destino tangível. Ele era um acadêmico mesmo.
E foi por contraste à sua presença naquela mesa que reconheci o tamanho da minha falta.
Procurei uma resposta. Cavoquei enciclopedicamente os intelectuais do meu campo de pesquisa. Talvez a Hannah Arendt? Não para um café. Agamben? Preferia que me desse aula. Os nomes me passavam pela cabeça, nenhum ficava. Não havia um único intelectual que eu tivesse vontade de conhecer para uma conversa de boteco, foda-se
era o que eu sentia de verdade.
Os livros eram suficientes pra matar a minha vontade acadêmica que começava e morria logo em seguida, simplesmente, na esterilidade da obrigação.
Se pra alguma coisa aquela pergunta do menino me servia, era pra me fazer ver que naquele café
numa elegante montanha suíça
eu estava no lugar
errado.
Quando o cheese cake chegou, o menino afundou a colher na cobertura de framboesa, bem devagar, depois quebrou a casquinha de baixo e me olhou por trás dos óculos
- E aí, agora me conta. Se pudesse escolher, com quem você tomaria um café?
Dei mais um gole no cappuccino fazendo cara de quem tinha um rol incrível para apresentar. Descobri que tinha uma resposta, mas não pra ele. Para mim mesma, enunciei pela primeira vez o que no fim das contas virou uma decisão mais de um ano depois
- Acho que o mais verdadeiro pra mim seria largar esse doutorado.
Vinte pessoas esperam sentadas em bancos de madeira no pátio interno de uma casa bem antiga. Faz frio e o ar tem a mensagem muda do inverno: nada se mexe. É segunda-feira, a casa que na verdade é uma repartição pública fica num tipo de bosque ou parque, longe de tudo.
As pessoas não se conhecem, mas vieram na mesma hora e pelo mesmo motivo. O pátio quieto não é bem por causa de tristeza - as pessoas são o inverno, também. Um funcionário sai pela porta e começa a chamar os nomes, um a um. Chegando a vez, a pessoa levanta do banco e caminha para o prédio onde numa sala de mobiliário e iluminação à la serviço público três funcionários com expressão vaga por trás da mesa - sente-se, por favor - anunciam ao visitante:
-Gostaríamos de informar que você morreu.
Antes de desaparecer para sempre no infinito, entretanto, a pessoa que chegou ali tem o direito de escolher uma única memória para levar pro Além. Você tem quatro dias para escolher só uma. O resto será esquecimento.
Quando assisti After Life no cinema, passei o tempo todo da sessão tentando encontrar a memória que eu escolheria. Entre as minhas finalistas, percebi que todas as memórias que eu queria guardar eram minhas com a minha mãe. Isto foi em 2004. Passaram dezenove anos e o inventário de memórias cresceu e se transformou. Até as minhas memórias antigas já estão diferentes para a pessoa que sou hoje. Não consigo fazer uma lista. Toda vez que penso neste assunto, fica mais difícil escolher uma memória só pra levar.
Volta e meia penso na pergunta do filme. Penso também naquela outra do Café do Salève, inocente, que foi o começo do fim de uma longa vida acadêmica. Já faz mais de uma década, e pra ser muito honesta nem o nome do meu colega eu lembro mais. (Será que ele virou uma celebridade intelectual?)
Volta e meia, principalmente quando estou lavando louça, penso nessas perguntas suspensas que são tipo um passarinho que levantou vôo e parou a meio do caminho, congelado para sempre no meio do ar. Esfrego com bom bril para tirar o resto de arroz queimado que grudou no fundo da panela enquanto elas me olham - a louça e as perguntas abertas.
Faço uma pausa, depois continuo.
Viver é ver essa pia encher e esvaziar um dia depois do outro.
Quanto às perguntas, é a mesma coisa. Fico com elas e acho que este é o melhor que elas podem fazer por mim. A esta altura eu meio que já desisti das respostas.
Coisas maravilhosas da semana
O Thiago, da Newsletter
, escreveu esta semana um texto muito bonito sobre "esse tal de solarpunk" - um gênero literário (no sentido amplo) que eu não conhecia porque sou iletrada em ficção científica. Mas o texto dele me fez descobrir que muito do que eu gosto de ver e assistir podia entrar dentro deste guarda-chuva solar. Atenda o chamado e leia esta edição linda de morrer.Assisti uma animação antiga do estúdio Ghibli na semana passada que me ajudou a lembrar que a vida vale a pena porque não faz sentido nenhum: voilà O Reino dos Gatos.
E por falar em insight, que é o tema de hoje, aqui está uma das minhas músicas preferidas do The Flaming Lips que resume de um jeito muito mais poético esta edição de hoje do Sofá da Surina.
Suddenly, everything has changed.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
#26. Perguntas de um milhão de dólares
Que gostoso ler um relato de escolha com seu tom, surina. Ontem foi o dia da menina e da mulher na ciência... Seu texto me acalmou sobre a minha própria escolha de não ter seguido em frente nesse lugar.
Que as perguntas lhe sejam sempre boas companhias. Beijo
escolher o caminho acadêmico, seguir ou abandonar, não importa muito. verdade é que marca nossas vidas. adorei o texto!