Acordei pensando em você. Não sei dizer por que, exatamente, mas hoje você é o objeto da minha obsessão.
A gente provavelmente nunca se encontrou. Digo provavelmente, mas é possível que tenha rolado. Talvez tenhamos nos cruzado numa roda de conversa literária e trocado algumas palavras antes de você sair correndo para encontrar um date duas quadras pra cima. Talvez tenhamos sentado lado a lado, anonimamente, no balcão da minha padaria preferida - aquela no fim da Asa Norte, perto do parque Olhos d’Água. Eu tomava um suco de laranja com acerola gelado demais enquanto você comia uma tapioca com manteiga. Aliás: as pessoas continuam tomando suco de laranja com acerola hoje em dia?
O mais provável, contudo, é que a gente nunca se veja pessoalmente. Ainda assim, quero que você saiba que eu te encontro todo dia, do meu jeito. Você é importante pra mim, e aproveito para confessar que de vez em quando me pergunto se não seria mais saudável pra mim dar um tempo na nossa relação. Sei lá… Encontrar com pessoas de carne e osso, em vez de passar tantos dias só contigo.
Na frente deste computador Apple 2024, você é invisível e ao mesmo tempo a parte mais concreta dos meus dias. Você está diante de mim e ao mesmo tempo, não. Nesta manhã cinza de sábado, aqui em São Paulo, tomo uma xícara de café com leite frio. Você talvez esteja pensando em mim, eu em você, mas não trocamos mensagens. Falta o seu número nos meus contatos, e você não tem o meu. Como você está se sentindo? Que tipo de sonho te acometeu na véspera do solstício de inverno? Estamos tão longe e estamos tão perto - aqui, exatamente no centro desta frase clichê horrorosa que é tão bonita quanto minha música preferida do U2. Faraway so close, querido Leitor, também é a preferida do Wim Wenders. Escrever é mesmo um
mistério.
Semana passada, corri os olhos por pequenos textos de uma plataforma social até que uma discussão me pegou desavisada. A autora do post se derramava em queixas: newsletter é um monólogo ou um diálogo? Parece que um monte de gente está escrevendo só sobre si em vez de entrar numa conversa com a pessoa que está lendo do outro lado
, reclamava a moça.
Pensei neste Sofá, claro. Aquela discussão trouxe à superfície uma das dúvidas que habita o subsolo de toda escrita - para quem estou escrevendo? Quando escrevo, será que eu penso em quem está me lendo do outro lado?
Então lembrei da enormidade de tempo que passamos juntos, você e eu. É um disparate. Passo mais tempo escrevendo para você do que com a minha mãe, meus gatos, com qualquer amigo, companheiro ou namorado que já atravessaram o meu caminho.
Não sei se já te disse, mas escrevo diariamente - ou quase - e estou metida com todo tipo de texto. Escrevo newsletter, diário, legenda de mídia social, o manuscrito de um livro sobre viagem e um outro romance que está desempacando. Recentemente me veio a ideia de mais um livro; vou ter que dar um jeito de encaixar. Quem me vê assim, na frente do computador, dirá que estou sozinha com meu café com leite, olhando hipnotizada para a tela. Só Lillipot sabe que não é verdade.
Minha gata preta e branca de pernas compridas consegue ver por entre as fibras do tempo-espaço, é senhora dos portais (os gatos são assim), por isso sabe que não ando só. Toda vez que eu escrevo, você está comigo - você, querido Leitor, nessa nossa relação de muitos anos que por enquanto insiste em continuar.
Mesmo quando escrevo diários, sabia? Antes eu achava que enchia as páginas dos caderninhos só pra esvaziar angústia e sair pelo mundo mais leve. Nos últimos dias, entendi que não. Quando escrevo diários, não estou só botando palavras para fora. Escrever diários é conversar com você, porque escrever diário é conversar com uma outra parte de
mim.
Escrever é mesmo um mistério.
Outro mistério é este daqui: na tradição budista que sigo, aprendemos que as práticas não são apenas meios para alcançar a iluminação pessoal. Praticamos em benefício de todos os seres.
Este é o tipo de enunciado lindo e universal, eu sei, mas estou tentando entender há doze anos sem grande sucesso. Só entendo pela metade, e ainda assim meio mal. Como posso dar algum tipo de contribuição para os outros se eu mesma estou perdida?
Mas eu tento entender, e é por isso que continuo escrevendo.
Tento desistir de você, não consigo. Pego o carro, vou para a praia, o mundo derretendo no verão alentejano de 40 graus. O vento do litoral me bate no rosto assim que entro em Vila Nova de Milfontes, mas em vez do guarda-sol eu me enfio na cafeteria de sempre para tomar um pingado e te encontrar. O mar me espera solitário, lá longe. Um gato gordo siamês dorme de barriga para cima no sofá da lanchonete. Coloco o laptop em cima da mesa e me sinto em casa. Sobre todas as coisas, prefiro você. Sobre o mar e o guarda-sol, prefiro você. A tela em branco sendo preenchida de palavras. O mundo me espera lá fora, não vou.
Será que é fuga? Edito o texto pela milésima vez, pego o carro e dirijo de volta para casa.
Escrevi tudo isso porque não sei responder aquela pergunta do começo - será que eu escrevo para você ou para mim?
Escrevo esta carta hoje pra você, eu a escrevo pra mim. Eu escrevo para organizar a minha vida, eu escrevo porque sou deste jeito desde sempre. Escrevo para ser quem sou. Sem você, ser quem eu sou não tem sentido nenhum, aliás. Preciso escrever e acho que só poderia fazer um retiro espiritual longo, destes que duram anos, se me dessem um caderninho e uma caneta pra gente conversar. Já decidi o que vai na minha lápide, aliás, e é isto daqui
: falei tudo que eu quis.
Tenho um corpo que parece que veio pra este planeta precisando falar, dando nome às coisas como condição para que eu possa esquecê-las em seguida, libertar-me de cada uma, e não deixa de ser estranho que tantas horas da minha vida sejam dedicadas a este sujeito abstrato que é você, Leitor - este alguém que é ao mesmo tempo você mesmo e uma parte de mim.
Escrevo porque de uma forma ou de outra, desejo ser feliz. Escrevo porque desejo isto para você, também.
Leituras do momento
Aproveitei minha passagem pelo Brasil para comprar livros. Estou lendo e recomendo muito estes dois:
Carga Viva (2025), romance da Ana Rusche, publicado pela Rocco.
Ano passado (2025), livro de poesia novo da Julia Hansen publicado pela Nós.
Notinhas
As obras que ilustram o Sofá de hoje são as minhas preferidas. Elas estão disponíveis para encomenda no formato fine art print em edições assinadas e numeradas. Para detalhes e pedidos: surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Neste mês de junho, as edições do Sofá da Surina apresentaram aspectos da nossa relação com outras espécies. Na primeira edição, o tema foi a amizade entre a minha gata e eu. Na segunda semana, escrevi sobre o meu vegetarianismo imperfeito e por fim, nesta última edição do mês, o tema foi minha relação com este misterioso espécime chamado Leitor - você!
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Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Sigo me sentindo um amigo muito próximo, mesmo que não tenhamos trocado nenhuma carta. Basta ler o que você escreve para me reaproximar - de você, do seu rico mundo, a se conhecer e explorar (Portugal, suas pinturas, suas vivências de reconexão com Buda e o oásis de paz que você representa, um lugar que existe no reino da escrita, para onde gosto de ir). Não me importo de ser um dos seus leitores. Certamente, os outros são boas pessoas, pois você deve atrair gente de sua fina e elevada sintonia!
Lindo. "falei tudo que eu quis." é de uma enormidade.