Reconexão.
É a palavra que me ocorre enquanto passo o café olhando os restos de tempestade através da janela. Choveu por duas semanas, e por um par de dias houve até um aviso amarelo vermelho laranja no país, cuidado com
as ondas
os ventos
os trovões. Evite sair de casa. Árvores podem cair.
A tormenta tomou para si o telhado da varanda no meio da madrugada. Rajadas de vento despregaram pedaços das telhas plásticas, que acabaram penduradas na estrutura de madeira fazendo um rangido horrível noite adentro. Era como se a casa toda se estivesse partindo ao meio, e foi então que os três gatos ensopados entraram pela portinhola para dormir na cama comigo.
Não dormimos nada, aliás. Embolados uns nos outros, atravessamos a noite de orelhas para cima.
No calor do edredon, fui varrida por uma tristeza e uma ternura tão imensas quanto o vendaval: os gatos voando para dentro de casa durante a tempestade em busca de proteção.
Eu também sou um gato. Eu também preciso de refúgio.
Os bichos buscam refúgio no vendaval. Os bichos todos deste planeta querem segurança, querem um canto tranquilo, querem paz.
Agora voltemos para o café passando no coador e à palavra
Reconexão.
Não é conexão, que acena para juntar as partes. Falo de algo ligeiramente distinto. Reconexão nos pede para ligar algo que foi desconectado e que – sabemos - um dia esteve unido.
Falo mais sobre religar os pontos de algum jeito. As metades talvez não sejam as mesmas, mas a gente tem esperança de grudar um pedaço partido com outra parte da gente. Meio que um remendo que só quando estiver devidamente costurado é que saberemos como vai ficar.
O corpo
Dentro da cavidade abdominal, meus órgãos vitais trabalham ativamente para fazer reconexões. É o mesmo corpo e não é. Uma amiga que fez a mesma cirurgia contou que são sete camadas de tecido precisando encontrar novos caminhos. Sete camadas refazendo ligações: músculos, vasos sanguíneos, gordura, pele.
Na falta do útero físico, os órgãos desenham em mim um novo mapa. Abrem estradas, constroem pontes e janelas. Aprendem silenciosamente a se empilhar uns sobre os outros sem o peso e o espaço que aquele pedaço que partiu ocupava.
Contra todas as indicações da médica
evite fazer esforços abdominais, minha querida
, pego uma picareta pesada e cavo um buraco no jardim. É quase como cavar na pedra dura - a terra do Alentejo é agreste. À medida que avanço, saem de dentro do chão as coisas mais improváveis. Areia, pedaço de telha e de cimento; pulam uns remendos de plástico enterrado. Vai saindo, mais e mais.
Quando o buraco fica fundo, uso a enxada para puxar a areia cheia de porcaria para fora. Separo as pedras com as mãos, jogo para longe e coloco no buraco uma muda de jasmim. Junto terra boa e planto.
Ele fica perfeito, pronto para crescer na primavera. Plantar o jasmim me dá satisfação; é a beleza finalmente retornando para este planeta.
Lembro no meu templo budista preferido, no norte da Índia. Não importa a hora que você entre, ele certamente estará arrumado e cheiroso para que você possa sentar, fechar os olhos, fazer preces e meditar.
Logo diante da porta, uma estátua dourada do Buda. Diante dela, no altar, há flores frescas e oferendas de água, comida e incenso bom.
Os templos podem ser simples ou luxuosos, não importa. Mas eles são bonitos. Os templos também são espaços de reconexão.
Aquilo que é belo. O que você faz quando precisa religar-se com aquelas suas partes que ficaram fora de contato? Sei lá, por aqui as coisas andaram meio feias nestes meses de 2025. A gelada cama metálica, os holofotes da sala de cirurgia. O tubo enfiado na goela, a hemorragia de madugada.
Não sei como é pra você (me conta nos comentários?), mas em momentos assim eu preciso de flores no vaso. Eu preciso de uma música bem bonita que não me peça nada. O barulho da chuva no telhado me acalma.
Escrevo um livro infantil, planto um pé de jasmim e podo o maracujá que está cheio de botões. O pé de maracujá em torno do meu atelier dá flores brancas e azuis inacreditáveis, tipo estrelas alienígenas.
Limpo a geladeira, cozinho batatas e troco a roupa de cama por lençóis novos e cheirosos com estampa colorida. As velas me trazem a memória de algo lindíssimo que nunca vivi e ao mesmo tempo experimentei mil vezes.
O que estou dizendo aqui? Quero dizer que é difícil entender. Mas existem momentos em que só o que é profundamente belo nos resgata. Nestes dias a beleza me surge como uma chama de ternura e cuidado, por isso me cerco dela como os gatos que foram buscar refúgio na cama durante a tempestade. Acendo incensos com cheiro de rosas e de sândalo, troco as cortinas.
A lógica disso eu não entendo. Mas nestes dias, entendo que a beleza redime o universo inteiro. Existem dias em que reconexão pede beleza. Existem dias em que fazer a reconexão significa acreditar de novo que não há só o feio em volta. Existem dias
, assim,
em que a beleza é necessária.
O Sofá em abril: Reconexão
No mês de abril, todas as edições do Sofá serão dedicadas ao tema da Reconexão. É uma forma de responder às edições de fevereiro e março, que foram tão focadas em textos sobre cirurgia-trauma-hemorragia-separação.
Nesta primeira edição, escrevo sobre o papel da experiência estética como elemento de reconexão íntima. Numa linha parecida, semana que vem vou apresentar a ideia de escrita reconectiva - ou seja, a perspectiva da escrita como meio de reconexão. Por fim, a última edição do mês é um relato de processo criativo em que conto sobre reconexão e uma pintura que estou fazendo da deusa Kali.
Notinhas
As pinturas que ilustram o Sofá são obras minhas e estão à venda (originais e prints). Entregas para o Brasil e para a Europa. Detalhes e encomendas por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
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Recomendações
Este texto da Fabi, que conversa muito com a edição de hoje do Sofá:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Surina, sempre na torcida aqui para que você esteja bem.
Já leu "O Ano do Pensamento Mágico", da Joan Didion? Tudo dela é maravilhoso, mas achei que seus últimos textos dialogam muito com esse livro em especial.
Um beijo e melhoras, em tudo!
Uma das coisas que mais me ajudam a me reconectar comigo e com a vida é a atividade física, no meu caso específico, a corrida. Eu faço outras coisas como pedalar ou jogar tênis por prazer e diversão, mas a corrida pra mim é celebração da vida, é gratidão, é retribuir ao universo o dom da vida. Como uma pessoa com ansiedade, me ajuda a colocar a cabeça no lugar.
Acho que por isso me identifiquei muito com o seu "O mundo sem anéis", várias das suas palavras conversavam muito comigo.
E correr, na minha visão, tem muito a ver com estética, pois me dá a chance de ver os locais onde corro de forma diferente; conhecer as ruas, os trechos tortos, desviar de buracos, ficar grato quando há um trecho plano com asfalto bom... enfim, desvendar os caminhos com meu próprio corpo.
Falei demais. Feliz vida, Surina!