A fumacinha saindo da xícara de café com leite me olha com ternura. Mais uma manhã, querida, termina logo essa fatia de pão antes que esfrie, diz o miraculoso líquido saído da cafeteira enquanto eu, sentada diante da mesa de madeira da cozinha, me preparo para mais um dia de escrita do romance novo.
Um dia de tortura, aliás. Provavelmente. Sozinha no apartamento da mamãe em Florianópolis, agarro-me a um iceberg de esperança. Quem sabe hoje?
Não está fácil, confesso. Vim com o firme propósito de terminar a primeira parte do romance. Há quatro dias, entretanto, não consigo saber que direção tomar no enredo deste meu novo projeto literário. Sem que eu me desse conta, começaram a aparecer umas coisas bizarras na minha bela história. Um dia a protagonista, uma criatura serena e decidida, resolveu dar voltas imprevistas no meu projeto de enredo.
Tudo bem; escrever é imaginar e imaginar tem dessas coisas. Segui em frente assim mesmo, com um relativo sucesso. A personagem foi parar numa caverna na praia. Tudo. Conseguia escrever uma meia dúzia de parágrafos, até que
- voilà -
apareceu um caderno cor-de-rosa misterioso na trama, e seguido a ele dois – repito: dois - fantasmas assombrando a personagem central.
Meu Deus.
Para tudo, hora de interceder. Deviam abrir minha cabeça e tirar de dentro dela a pedra da loucura, como naquele quadro do Bosch.
Diante da pirueta fantasmagórica, resolvo apelar para outras dimensões, para o olho que tudo vê, o portal que abre para o futuro, a solene voz do
Oráculo.
Embaralho meu novíssimo Tarot Mágico dos Gatos sem uma pergunta precisa. Faço o que me resta, o que eu devo saber agora para a escrita do livro? Corto o maço em três montes, recoloco cada um sobre o outro e viro a profecia com a esperança de uma resposta, mas o que me vem
mais uma vez
é a carta de sempre.
Todo dia. Embaralho o tarot, corto, pesco uma carta e bum
: ela. Das 78 possibilidades do baralho, a minha energia do momento é definitivamente um Seis de Espadas pouco sexy sobre o qual tão pouco se comenta, do qual ninguém se lembra e que claramente parece consistir no meu
destino.
A carta repousa contra o pano roxo de cetim. De dentro dela, um peludo gato siamês me encara com uma expressão que nem sei dizer do que é, os olhos bem abertos como se estivesse assustado. Como se estivesse vendo uma assombração.
Talvez esteja se comunicando com o fantasma que apareceu no meu livro novo.
É noite na carta. O fundo deixa ver uma caravela e montanhas num lugar bonito e frio, com um mar verde. Na minha fantasia, o gato está na Islândia, olhando assustado para um ser mágico, cercado de seis espadas cravadas na areia da praia. Uma delas está toda torcida.
O que esta carta quer dizer, afinal? No livrinho que acompanha o Tarot Mágico dos Gatos, aparecem estas palavras: Progresso-Viagem-Solução.
O gato fita algo-que-não-se-vê com os olhos fixados, as patas em terra firme, na beira da praia. É de noite. Escrevo esta edição do Sofá no intervalo chuvoso que atravessa o dia das bruxas e o dia dos mortos, minha época preferida do ano, este interstício no qual as fibras do tempo se abrem para nos deixar espiar o que está para lá dos portais.
Não sei o que o gato siamês enxerga.
Mentira.
Eu sei, na verdade.
Aquilo que o gato enxerga
O gato enxerga uma coisa grande que o congela em suspensão – algo está diante de mim; algo está para acontecer.
A beira da praia onde ele pousa as quatro patinhas peludas é diminuta, uma estreita faixa segura entre o assustador ser desconhecido que tem diante de si e o mar com a caravela às suas costas. Este gato está pousado num porto seguro bem pequenino cercado de incertezas, este gato fita o fantasma do meu romance sabendo que vai ter que atravessá-lo até o outro lado, este gato sou
eu.
O gato somos nós
Pensando bem, o Seis de Espadas é uma carta bem bonita.
Pensando bem, o Seis de Espadas é uma carta que me obrigou a parar. Estou aqui de novo e acho que seria bom você prestar atenção em mim.
Olhei para ela com tanta verdade e com tanto desejo que virou minha carta preferida do tarot, então resolvi pintá-la.
Pensando bem, sempre vou ao baralho em busca dos arcanos maiores, dos arquétipos grandiosos que abraçam a vida na totalidade de uma resposta. Mais, ainda, prefiro aqueles que anunciam a promessa de completude - a Imperatriz, a Temperança, a Estrela, o Mundo.
Pensando bem, são raros os momentos em que tocamos os grandes arcanos com as duas mãos.
Mas o Seis de Espadas é diferente.
O Seis de Espadas é aquela música de fundo da vida que por razões de segurança procuramos silenciar antes que se anuncie muito alto na mente. Nada é certo, querida. Algo está para acontecer, e você não sabe direito o que é, nem se vai dar conta de encarar
, diz os Seis de Espadas. Atrás de mim, a caravela promete o mar, não o porto. A carta não apresenta a outra margem.
Pensando bem, todo buraco negro que existe no universo se assenta sobre um ponto minúsculo. Apesar de muito pequeno, de muito pequeno mesmo, este ponto no coração do buraco negro é uma das criaturas mais poderosas que há: ele comporta uma gravidade pesada o suficiente para curvar o tempo e o espaço.
Tudo é possível. Tudo está para acontecer. E se eu me deixasse cair só de biquíni dentro deste ponto infinitesimal onde o gato do Seis de Espadas foi parar, nesta estreita faixa de areia sem garantias nem solidez além do mar vasto às minhas costas e o mistério insolúvel diante de mim?
Na magia dos oráculos, a carta do baralho me dá uma resposta enigmática. Penso no budismo e na maravilhosa ideia de bardo, então vou atrás de uma citação da autora & monja budista Pema Chodron para dividir com vocês neste texto, porque ela é linda e sempre que penso em me acomodar na Grande Incerteza, lembro dela. Escolho este trecho aqui embaixo que me lembra que o Seis de Espadas é um enigma, e que o enigma não foi feito para ter solução. O enigma – assim mesmo, suspenso – é a própria resposta:
“Achamos que o objetivo é passar no teste ou superar o problema, mas a verdade é que as coisas não se resolvem. Eles se juntam e se desfazem. Então eles se juntam novamente e se desfazem novamente. É exatamente assim.”
Recomendações
Meu recente interesse pelo tarot é culpa destes dois autores aqui embaixo que escreveram textos ótimos sobre as cartas mágicas:
A Ana Rüsche, autora da newsletter Anacronista, tem um texto primoroso sobre tarot no livro de ensaios que publicou recentemente. Você encontra o livro dela à venda por aqui.
Notinhas
- O trecho da Pema Chodron citado nesta edição foi escrito originalmente em inglês e faz parte do livro Quando tudo se desfaz, publicado no Brasil pela editora Gryphus. Aqui está a passagem em inglês:
We think that the point is to pass the test or overcome the problem, but the truth is that things don't really get solved. They come together and they fall apart. Then they come together again and fall apart again. It's just like that.
- Durante este mês de novembro, o Sofá da Surina terá uma editoria toda baseada em cartas de tarô. Nesta primeira edição escrevi sobre o Seis de Espadas para falar sobre transição. Semana que vem será a vez de uma edição usando o 3 de Ouros para discutir a pergunta que um leitor me enviou aqui no Surina Responde sobre criar e ganhar dinheiro. Finalmente, a última edição do mês vai chegar até você num período em que vou estar em retiro - por isso vou escrever sobre O Eremita.
- Se você acabou de sentar neste Sofá, quero te contar que sou escritora e ilustradora. Além de escrever o Sofá da Surina, sou autora de dois livros lindos. Você pode conhecer e comprar o 108 e O mundo sem anéis aqui (entregas para todo o Brasil).
… ou, se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
O que mais amo no seis de espadas é a excitação da travessia. Frente aos oceanos trazemos em nossos barcos nossas espadas-armas-canetas. Seguimos sem olhar para trás. Amei ter a sua visão da carta 🥰
Querida Surina, outro dia tirei essa mesmíssima carta em uma questão parecida com a sua. Acho muito emblemático que as espadas vão junto com a gente nessa jornada. A minha interpretação pessoal é que são as nossas vitórias, assim como nossos fracassos, que mostram o caminho. Ou seja: use o que você aprendeu nos romances anteriores para resolver o dilema deste aí, e confie que você está no caminho de algo assombroso e muito diferente, mas que tudo te colocou em marcha para chegar lá