Minha primeira impressão ao abrir a porta da casa
às 6.30 da manhã
é a de que Mister Gray é um gato fofinho. Em plena luz pastel do amanhecer, os olhos verde-claros no corpo cinza-chumbo me olham do lado de fora da porta aberta. Leva um bichinho de pelúcia na boca:
- Olha só, ele acordou animado hoje, acho que quer brincar
, digo ao meu marido e me abaixo para fazer um carinho no pescoço peludo.
Só então noto que há um
coelho filhote
entre os dentes do meu animal de estimação. Ele agradece pela atenção que damos ao presente que nos trouxe tão cedo, leva a caça para o capacho, larga o cadáver ali e deita-se na frente da porta tranquilo,
uma esfinge. Prefiro esquecer.
Prefiro que não tivesse acontecido.
Preferia que o coelho não existisse, finjo mesmo que não existe e fecho a porta. Faço nossa meditação matinal de meia hora e tomo café da manhã com meu marido, que sendo de Londres tem mais medo de aranha e bicho morto do que eu:
- Meu apartamento da infância tinha carpetes vermelho [ele]
- Nasci na Amazônia e aos três anos mamãe me mandou ter cuidado com as jararacas [eu]
Confessamos assim pela primeira vez nosso passado improvável entre uma torrada e outra.
- Tem mais ovo?
- Não; peraí que vou fritar.
A vida dará conta de tudo.
A vida sempre dará conta da tragédia.
Tudo terá um final feliz.
A ordem cósmica é a da harmonia.
Fomos feitos um para o outro.
Mister Gray retirará o bicho do capacho, e assim que este café da manhã acabar, assim que eu abrir a porta
outra vez
, o coelho filhote marrom de orelhas compridas (duas semanas de vida? Uma, talvez? Ele é do tamanho da palma da minha mão)
o coelho filhote já terá sido levado embora
terá desaparecido para
sempre.
Não deve ter sofrido
: era o destino dele.
Que Deus o guarde
(nem era tão pequeno assim).
Era a hora certa.
Que reencarne em outro corpo.
Isto nunca aconteceu.
Mas não foi assim
: abrindo a porta da frente, Mister Gray brincava com o coelhinho morto do mesmo jeito como gosta de brincar com a minhoquinha de pelúcia cor de rosa que lhe demos de presente há uns meses atrás. Uma minhoquinha que achamos numa loja do chinês da cidade de Ourique, a vinte quilômetros daqui, e só agora me dou conta que nas nossas noites de inverno em casa, nas quais ele brincava
no tapete
o fogo queimando na lareira, Lee e eu com uma civilizada xícara de chá
Mister Gray, com a pelúcia cor de rosa que compramos no chinês
as patinhas agarrando
as pernas dando chutes
: na nossa sala linda de azulejos modernistas
mister Gray já brincava de matar.
Agora, de volta ao capacho em frente de casa
o corpo do coelho voa no ar e depois se espatifa no piso
: o coelho é leve, bebê, muito pequeno
faz barulho quando bate no chão porque
não é um só animal de pelúcia lançado para cima pelas patas brancas do meu gato. Quando cansa de brincar, mister Gray me olha com aquele rosto
fofinho, olhos
verdinhos, e diz
- Perdeu a graça, o coelho já não se mexe
mais.
E sem grandes rituais de passagem nem protocolos (mais como quem estica o garfo da massa para a salada de tomate ou passa do segundo prato para a sobremesa)
, Mister Gray enfia os dentes abaixo da cabeça e começa a comer o coelhinho, começando pelo
pescoço.
Puxa a pele
escalpela o crânio.
Fecho a porta.
[meu marido]
Vem, meu amor
deixa disso
é bom você superar essas
coisas, afinal de contas é só um corpo
morto no capacho. Vamos enterrar embaixo da árvore.
Abrimos a porta de novo, mas já não há mais corpo ali. Há apenas
: fígado, pedaço de cérebro, os intestinos
brilhando, porque Mister Gray os limpou cuidadosamente com a língua.
Sobraram também as patas de trás.
Meu marido leva o capacho até a árvore.
Mister gray entra em casa. Passa o dia inteiro
deitado
depois de comer pele de coelho, crânio, espinha, osso, tendão, sei lá mais o que. Chora feito uma criança com dor de barriga
uma esfinge com problemas de digestão
- Coitado, deve estar sentindo dor
, dou-lhe um beijo no focinho, depois tenho uma vaga sensação de nojo ao lembrar que comeu até os ossos do bicho
, e penso
- Tenho que passar na farmácia para comprar-lhe vermífugo.
Deitamos os dois no sofá. Ele dorme. Eu pesquiso na internet se existe eno para gatos.
Sobre o texto de hoje
De repente o calor que estava rolando aqui em Portugal desapareceu para dar espaço a um clima precoce de outono. É a minha época preferida do ano; os dias vão ficando escuros e eu, meio fantasmagórica.
No espírito da edição de hoje, deixo vocês com o comecinho de Go Now, um poema outonal que o Gary Snyder escreveu a partir da morte da sua companheira. Gary é budista e uma das razões da minha adoração por este poema está no dharma (ensinamento) inscrito nas palavras da poesia: Gary nos traz o olhar corajoso sobre o corpo e sua passagem.
Temos dificuldade de olhar o inevitável, mas encontrar o ensinamento de tudo passa é também falar sobre a morte ao nosso lado. Foi um pouco o que tentei fazer na Newsletter de hoje; espero que vocês não tenham se assustado, e se tiverem deixem um comentário com sabor de dia das bruxas, por favor:
Go Now, por Gary Snyder
You don’t want to read this,
reader,
be warned, turn back
from the darkness,
go now.
-- about death and the
death of a lover -- it’s not some vague meditation
or a homily, not irony,
no god or enlightenment or
acceptance -- or struggle -- with the
end of our life,
it’s about how the eyes
sink back and the teeth stand out
after a few warm days.
(A íntegra do poema você encontra aqui).
Notinhas
Começou com uma experimentação, mas acabou virando um projeto mais longo: as ilustrações desta edição fazem parte de uma série de pinturas retratando a relação entre uma mulher e seu gato. São obras grandes em aquarela (esta aqui em cima mede 42 X 70cm) que comecei porque queria testar novas possibilidades de enquadramento e paleta de cores. Os originais estão à venda.
Este texto lindo aqui, da Fabiane Guimarães:
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Eu me identifiquei muito! Aqui em casa temos gatos e eles tb trazem passarinhos, lagartixas e uma variedade de insetos para dentro de casa, já encontrei uma barata morta embaixo do meu travesseiro. E outro dia, foi o dia de uma rolinha. Quando é passarinho acho que a dor sentimental é muito maior, mas acho que consigo lidar melhor do que nas primeiras vezes que isso acontecia. Eu me aproximo, vejo como está a rolinha, se existe feridas, e sempre existe, então não tem o que fazer, ela ainda está viva, mas não vai durar muito, os ferimentos são sempre feitos em regiões do corpinho que já sinalizam o fim do passarinho. Então eu pego o passarinho gentilmente, e levo ele para o quintal, e o meu gato vai junto, fazendo o miado charmoso que ele faz quando estou preparando o sachê de comida pra ele. Coloco o passarinho no chão do quintal e deixo o gato finalizar o ciclo. Aprendi que não devo mexer o cadáver, pq os gatos tem um tempo para comer. Uma vez meu amigo fez menção de enterrar e eu disse não, pq o ciclo tem que se fechar e não está em nossas mãos determinar o fechamento de ciclo do bicho morto, pq os gatos comem e este é o fechamento do ciclo do bicho. Mas tem vezes que os gatos não comem e daí é mais triste que o triste que eu sinto quando vejo o passarinho morrendo.
Surina, minha bruxa preferida 🖤✨