# 12. Sobre a imprescindível necessidade das passagens subterrâneas
O amor que vive em coisas muito muito pequenas
O aeroporto de Stansted, em Londres, estava tão cheio às 4 da manhã que era impossível comprar um café com leite sem esperar mais de uma hora. Gente esparramada pelos cantos, bebês irritados, bagagens na mão. No meio do furdunço, a placa escondida no canto do corredor escuro dizia
Quiet Seating Area
, apontando para uma escada rolante.
Segui a flechinha por curiosidade. O que será que tem numa quiet sitting area?
A escada rolava roboticamente fazendo um toc toc de coisa quebrada.
Desci.
Não estava preparada para aquele encontro, juro que não. Apenas um nível abaixo do deus-nos-acuda, vinte pessoas sentavam placidamente à meia-luz. Pouquíssima gente no celular. Havia cadeiras vazias e um carpete cinza que me recebeu muito, muito calado.
Estava tudo tão calmo que sentei no chão com um caderno para escrever o texto desta Newsletter e quando abri os olhos de novo já era uma hora e meia depois.
Já não havia mais ninguém em volta de mim.
Só o barulho da escada rolante estragada me provava que eu estava no mesmo lugar e que entre o depois e o antes havia uma espécie de continuidade.
Vim para esta cidade porque meu marido é britânico e trabalha aqui.
Ontem fomos visitar a avó dele.
Ela mora há quarenta anos no mesmo apartamento, uma cobertura antiga com papel de parede dourado de onde se vê a skyline de Londres, London Eye, os arranha-céus na beira do Tâmisa.
Na mesa da cozinha cor de abacate, as estátuas de pato me olhavam curiosas. Tomamos chá. Ela preparou uma mesa enorme. Entre biscoitos e chocolates encontrei pedaços de manga picada, você deve sentir falta de casa
, ela disse.
É uma senhora de noventa e três anos que não gosta muito de sair do apartamento porque dá muito trabalho arrumar sua peruca e porque a multidão na rua a relembra dos bombardeios em Londres na segunda guerra.
A avó do meu marido é judia e tem boa memória.
Levava uma maquiagem bonita, um vestido preto com estampa florida. Arenque, cebola em conserva, salmão defumado, algo na cozinha parecia flutuar.
Era a presença dela.
Já na porta, se despediu do meu marido
- Sempre é bom a gente se despedir de verdade, porque estou velha e pode ser a última vez –
ela abraçou o Lee.
Depois acenou do fim do corredor por muito tempo
até a porta do elevador se fechar
na nossa frente.
Não sei porque estou contando estas coisas.
Ontem à tarde, em Londres, meu marido estacionou o carro. Saiu com o amigo e duas cachorras para o supermercado enquanto eu fugi para uma livraria do bairro que vi de relance pela janela
- Me deixa aqui!
Olhei os livros com reverência de primeira vez; moro no interior, faz tempo que não entro num templo de livros. Andei pelas prateleiras e abri numa poesia da Mary Oliver.
Ao terminar, olhei pela vitrine e notei que o Lee me esperava do lado de fora
com as duas cadelas, o amigo
um jeito terno de quem não tem pressa
e duas imensas sacolas de compras.
Fiz uma pequena prece para que os livros tenham vida longa neste mundo.
Por que estou contando estas coisas?
Vivendo tanto tempo no interior & com pandemia, acho que essa passagem por Londres me fez pensar sobre a importância fundamental dos portais mágicos para a minha saúde mental e a de todos os seres humanos.
Não sei vocês, mas tenho a impressão de que os últimos anos foram permeados por uma espécie de ceticismo misturado com distopia. A realidade ficou parecendo uma coisa seca e sem graça, um pé de alface esquecido por horas no carro num dia de verão.
Mas existem portais. Do sofá florido deste apartamento no centro de Londres, deitada com o Lee e os dois cachorros dos nossos amigos, assistimos ao vivo pela tevê o Festival de Glastonbury. As pessoas têm glitter, roupa de unicórnio e um senso de humor maravilhoso. Penso assim: taí um lugar seguro; ninguém vai ser anti-aborto nesta multidão.
De repente elas começam a cantar e na tela aparecem os fogos de artifício. É a última música do show do Paul e as 250.000 pessoas repetem o verso mais lindo de todas as músicas dos Beatles:
and in the end
the love you take
is equal to the love
you make
É verão
, então vai um trechinho deste poema maravilhoso da Mary Oliver pra você atravessar para o outro lado do solstício.
Summer Day
Tell me, what else should I have done?
Doesn't everything die at last, and too soon?
Tell me, what it is you plan to do with your one wild and precious life?
(New and Selected Poems, 1992)
and
instead, she faced the sun
so she became the sun
itself
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,