Há cerca de dois meses, abri uma caixinha de perguntas aqui no Sofá. Recebi todo tipo de dúvida, e confesso que a parte mais difícil foi escolher só uma para responder sabendo que tanta gente teve a delicadeza de usar do próprio tempo para me perguntar algo.
Nesta edição, então, resolvi me debruçar sobre uma questão cabeluda. Então vamos lá, abrir a salsicha da poética vida criativa:
Querida Surina, como equilibrar vida contemplativa e criação neste mundo no qual a moeda é o dinheiro?
Querida leitora,
Não sei.
Tenho um belíssimo Saturno em Virgem que me lança numa busca interminável pela organização – um labirinto, aliás, no qual costumo me perder redondamente. Um dos meus hábitos preferidos consiste em fazer resoluções de ano novo tentando equilibrar o impossível: conseguir ganhar o suficiente e ainda por cima reservar tempo para as práticas espirituais & criativas sem entrar na máquina de cortar grama do samsarão.
Apesar de me faltar resposta sobre o modo ideal de resolver essa situação, vou dando o meu jeito, do jeito que dá. Aqui está uma lista não exaustiva do que me ajuda. Espero que ela te ajude também.
Relembrar a prioridade
Uma vez li algo do professor budista Dzongsar Khyentse Rinpoche que ia nesta direção: é preciso estar sempre atento, porque a linha que separa os dois é borrada. É preciso observar se você está dedicando a vida ao dharma ou se está usando o dharma para ganhar a vida.
Volta e meia eu volto a este enunciado. Por que estou escrevendo? Por que estou pintando?
Tenho devoção às coisas do espírito e aos 44 anos é certa a ordem que escolhi: vivo para servir a escrita e as práticas, não o contrário. A escrita tem sido meu refúgio desde os seis anos; as práticas são o meu modo de compreender o mundo - e, se tudo der certo, beneficiar um pouco os outros com esta compreensão. Passar tempo sozinha, criar e escrever são meios que encontrei para entrar em contato com os conteúdos que me surgem na mente, aceitá-los e libertá-los.
Quando estou mal, por exemplo, sei que não estou à deriva. Volto à escrita nos momentos de alegria e de terror e ela está à minha espera. Sempre. A página em branco é uma Bodisatva, uma criatura bondosa que me aceita com amor e sem julgamento, vazia, despida de opiniões.
Por isso, então, gosto de proteger minha escrita e dedicar-lhe tempo. Em troca, ela cuida de mim. Às vezes a escrita me dá um pouco de dinheiro para manter este lindíssimo corpo tridimensional de pé. Em momentos assim, sinto alegria. A maior parte das vezes, entretanto, o dinheiro que a escrita me oferece não é suficiente - então trabalho com outras coisas para continuar sustentando as minhas criações. Não é o arranjo dos meus sonhos e tudo bem, desde que eu esteja constantemente escrevendo, criando e investigando quem sou com a máxima honestidade possível.
O que quero dizer é que o equilíbrio entre ganhar dinheiro e realizar práticas contemplativas não é sempre o mesmo. Pelo menos para mim. Às vezes ganho mais, às vezes menos.
Mas haver entendido minha prioridade e voltar regularmente a ela foi muito importante. A prioridade me devolve para uma espécie de centro estável no olho do furacão.
Volto para o enunciado do Rinpoche e me entrego ao coração do Buda.
Dentro do coração do Buda, Eu.
Dentro do coração do Buda, o meu trabalho, o café com leite, o espaço entre o chão e a tampa da privada. Tudo. Tudo que eu faço.
Contemplar é Viver
Existe, na verdade, uma oposição entre vida contemplativa e vida material?
E se as duas estiverem em intersecção? E se elas se sobrepuserem?
E se a opção de continuar servindo aquele cliente grosseiro no restaurante for, também, viver uma vida contemplativa?
E se a escolha de deixar o trabalho no restaurante depois de avaliar que aquele cliente é trash demais – e se isto, também, for parte da vida contemplativa?
E se os princípios da vida contemplativa não estiverem confinados ao monastério? O que vai acontecer se eles explodirem na sua mala existencial e contaminarem tudo, feito um shampo que derramou na mochila e melecou as suas camisetas, calças e calcinhas?
Viver com menos
Esta é de ordem prática e bem pessoal. Veja se serve pra você (talvez não sirva).
Sobre mim, aprendi: que para criar e ficar calma, preciso ter bastante tempo para o absolutamente inútil. Para investigar por que estou aqui. Por que os outros me incomodam. Por que eu me incomodo comigo. Por isso, então, me estabeleci numa vila do interior e organizei a vida dentro de uma estrutura com o menor custo possível. Não tem nem restaurante para comer fora. Estúdio de pilates, musculação. Não tem sequer farmácia onde vivo.
Diminuir a pressão financeira abriu um pouco mais de espaço para que eu possa me dedicar a tudo que não é funcional, como por exemplo beijar meus 3 gatos e tomar café com leite sozinha no terraço do atelier enquanto uma camada de aquarela está secando. Escrever, pintar, observar a minha mente, descobrir quem é o Buda e o endereço da residência dele.
Às vezes não dá
Às vezes simplesmente não dá. Falta grana, bate uma bad, o que estou fazendo da vida?
Em momentos assim, vou dar uma volta de bicicleta ou caminhar. Ligo para uma amiga, converso com o Lee, vou cuidar do jardim e a minha gata branca e preta vem me fazer companhia, a Lillipot, pequena, miando, caminha na minha direção, dona de nada mais além do seu corpo e de um coração cheio de amor.
É que às vezes é assim mesmo. Às vezes não dá.
Querida leitora, espero que estas breves considerações te sejam úteis. Somos diferentes, partimos de lugares que não os mesmos e sabe-se Deus que desejos guardamos dentro de nossas caixas torácicas.
Antes de terminar, entretanto, queria te lembrar - e me lembrar - de não esquecer do segredo maior, do mais importante. Quero te lembrar que esta vida humana é preciosa e que em torno das nossas escolhas repousa a nuvem do Imponderável. E que por mais que a gente preveja e tente equilibrar o impossível, não tem jeito: é dentro do Grande Mistério que vivemos.
E esta é uma notícia maravilhosa.
Recomendações & notinhas
-A Vanessa Guedes também escreveu uma edição respondendo a perguntas dos seus leitores esta semana (você já conhece a newsletter dela?)
-Adoro a newsletter “Drops da Fal” e este foi um dos textos mais bonitos que já li neste Substack:
-Vegana & feminista:
-Além de escrever o Sofá da Surina, sou autora de dois livros lindos. Você pode conhecer e comprar o 108 e O mundo sem anéis aqui (entregas para todo o Brasil).
- … ou, se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
A simplicidade não é fácil, e como tudo na vida, conta com um caminho de decisões... Mas é tão bela! Seu texto é lindo, senti um ar fresco aqui ao lê-lo.
Estou chegando agora por aqui. Que escritura maravilhosa! Também sou quase budista, mais sansárico, menos iluminado. Gratidão por compartilhar por aqui. Abraço.