Desço para o atelier que fica no jardim de casa. A luz está tão bonita que nem parece de verdade. Por uns dez segundos
-talvez doze-
a luz é tudo que existe: entra pela janela, me atravessa a pele e apaga distâncias. Entre meu corpo e as ondas fotovoltaicas,
agora
há só uma membrana fina, e ela é imaginária.
Quando volto a mim, volto também ao que me cerca. Ao corpo, ao caderno de tarefas, ao monitor grande do computador, conectado ao pequeno
laptop
à caneca entupida de lápis de cor, ao controle do ar condicionado, ao abajur dourado, à paleta de cores que pintei há um ano, pendurei na parede e que me é útil
: ela me é tão útil.
Daqui a três semanas viajo ao Brasil para lançar o livro novo. Quando comprei a passagem, meu plano era passar vinte dias por lá, mas de repente tudo mudou: decidi que ficaria quase três meses, o maior tempo que já passei desde que mudei para Portugal.
Tive a ideia de estender a viagem diante da notícia de que meu professor querido estará no Brasil. O livro que estou lançando é dedicado ele. A coincidência pareceu-me muito especial e auspiciosa: lançar o livro e entregá-lo em mãos ao meu professor na terra do querido país onde nasci
por que não?
Diz a razão que eu deveria fazer esforço antes de ir. Comprar uma geladeirinha e uma placa de indução, montar uma kitchenette, trazer de volta o futon de casal que fica agora no workshop do meu marido e alugar meu atelier enquanto eu estiver fora.
Apesar de ser o caminho mais lógico
- um pouco a mais de dinheiro seria muito bem-vindo neste momento -
nada em mim quer andar nesta direção.
Durante a viagem, desejo ao meu atelier de escrita & pintura o mais ilógico dos destinos. Desejo que fique bem assim, exatamente como é
: sendo meu atelier. Fechado. Desejo que na minha ausência ele receba apenas a visita ocasional dos gatos
(são três), e que o espaço entre as paredes continue fazendo preces em meu nome para o silencioso altar, para a estátua do Buda e as gravuras na parede e as tintas na estante. Tudo que se toca com o coração verdadeiramente aberto é um pouco
sagrado, não importa se é um rosário de preces ou uma folha em branco.
Desejo que meu atelier espere o o dia em que eu (talvez) faça meu caminho de
volta.
Nunca sabemos se a viagem terá volta.
Ir é sempre um mistério. Mesmo que se queira, a verdade é que a gente muda. A verdade é que viajar faz um pedaço da gente morrer e outro nascer
-os dois-
e quando volta, a gente nunca volta para o mesmo
lugar.
Tenho um pouco esta melancolia sempre que estou a ponto de partir.
Você também tem isso? É um lugar-entre, que adora e ao mesmo tempo se perturba com as viagens. Além disso, não gosto de andar de avião.
Vim hoje ao atelier com uma lista de temas interessantes sobre os quais quero escrever há bastante tempo, assuntos que dão voltas e estão recheados de insights, mas tudo me pareceu excessivo
demais. Por alguma razão
uma razão tão ilógica quanto a recusa de alugar este meu estúdio
quis escrever sobre a luz que bateu às cinco e meia da tarde.
Num dos seus livros (acho que no Long Quiet Highway), a Natalie Goldberg conta de um dia na escola em que começou a chover. Seu professor fez todos os alunos pararem
- imagina, uma turma inteira de crianças quase adolescentes –
e por alguns minutos todos que estavam na sala ficaram ouvindo o barulho da chuva. Alguma coisa mudou para Natalie naquele dia. Arrisco dizer que o caminho que ela atravessaria ao longo da vida no zen começou ali.
Lembro disso e sinto uma onda de confiança.
Não é preciso dar voltas nem escrever insights magníficos. Não é preciso dar respostas, e às vezes mesmo as perguntas são desnecessárias.
Nalguns dias basta isto, e isto é tanto
: escrever sobre esta luz.
Notinhas da semana
-Quero agradecer a todo mundo que apoiou a campanha de pré-venda do 108. Deu muito certo: atingimos 134% da meta <3 Obrigada por dar ao meu primeiro romance a chance de chegar ao nosso planeta azul.
-O livro logo logo estará disponível em alguns pontos de venda pelo Brasil. Enquanto isso, você pode comprar o 108 ou o O mundo sem anéis (meu livro anterior, que ganhou segunda edição!) por este link aqui:
-Quer um ebook? A versão em Kindle do 108 está disponível aqui, no site da Amazon.
-O Sofá da Surina é uma Newsletter semanal que chega até você três vezes por mês. Sábado que vem é dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 7 de setembro.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Boa viagem! Deixe o ateliê assim mesmo, ter menos com o que se preocupar é sábio. E talvez a viagem já tenha começado. Na maioria das vezes, acontece bem antes do embarque do avião. Te vejo aqui ❤️
Que texto delicioso de ler! 🧡
Que bons ventos de acompanhem no Brasil :)