A memória é uma habilidade humana engraçada. Uso engraçada porque me falta outro termo, então lanço mão desta palavra curinga recheada de lugares comuns: dizer que a memória é engraçada equivale a dizer absolutamente nada.
Talvez o melhor fosse dizer que a memória é curiosa. Ou que é um mistério. Divertida também serve. Ou reveladora, porque com o tempo a gente esquece tudo que passou batido e o que se inscreve na memória é tipo um carimbo das nossas impressões mais fortes, revelando o que nos marca pessoalmente.
Se penso em memória, penso que ela é tudo isso: curiosa, um mistério, divertida, reveladora. A memória também é traiçoeira e ardilosa, a gente sabe bem, já que tenta colocar a marca da verdade em experiências que às vezes nem aconteceram como a gente lembra.
De novo, a memória fala mais de nós do que de algo em si.
Faz seis meses que desejo escrever uma edição da Newsletter com o título As três coisas mais importantes que aprendi vivendo num ashram, mas nunca dá certo.
Toda vez que começo, tenho a impressão de que estou escrevendo um texto-marketing para chamar a atenção do leitor da pior maneira possível. Algumas experiências não aceitam ser colocadas numa lista de Top 3, e ao tentar fazer isto sinto-me num carro da pamonha espiritual berrando fórmulas prontas ao megafone - alô alô freguesia, aqui é o Sofá da Surina passando na sua rua. Temos ensinamentos de mindfulness, ensinamentos de compaixão, ensinamentos de creme e goiaba
fresquinhos
, quem vai levar?
Cansada de insistir na ideia barata das três coisas mais importantes que aprendi num ashram, afasto-me da tela e sento com a memória diante do computador. Quando penso nos meus dois anos e meio vivendo no ashram, o que é que me vem à cabeça com a força de primeira impressão?
Estas são as minhas três memórias de hoje.
Memória 1: A xícara de café com leite
Lembro das xícaras brancas que esperavam sozinhas na estante de madeira do refeitório numa manhã
de inverno. Ainda cambaleando de sono, eu pegava a minha sem precisar fazer o esforço desnecessário das escolhas estúpidas: as xícaras eram todas
iguais. O monastério tem esta coisa muito linda que é te poupar de certas bobagens - como a escolha de xícaras, por exemplo.
Nos meses frios as portas do ashram se fechavam para o exterior e o zigzag dos visitantes era substituído pelo cotidiano lento dos residentes. As filas para comer ou ir ao banheiro desapareciam. A rapidez virava outono. Depois, frio.
Nosso refeitório era aberto e gelado, com a delicadeza que só a simplicidade consegue ter. Esta também era outra coisa linda: tudo num ashram é caminho do meio, feito na exata medida para o que se precisa. Sem sacrifício nem conforto exagerado. Pelas janelas enormes eu via a neblina da primeira manhã subindo no sentido oposto ao da gravidade
- da terra para o céu -
, a xícara branca esquentando a mão. Naquelas manhãs eu não tinha grandes projetos nem uma carreira para
alcançar. O ashram é um lugar onde todas as fachadas possíveis de futuro se apagam. A xícara quente contra as palmas das mãos frias era a única realidade, e ela era suficiente
e natural. De manhã, sozinha no refeitório de inverno, eu era
feliz. Poderia falar aqui de recitação de mantras, dos muitos retiros de que participei e que em alguns casos duravam semanas. Poderia falar de ensinamentos que se esticavam por um mês, e seria tudo
mentira.
O café com leite de inverno era uma das minhas experiências mais transcendentais.
Memória 2: Partidas imperceptíveis
De tempos em tempos um residente tinha que ir embora por um período longo para atender uma questão de família. Alguém doente, alguém que precisava de apoio, uma questão burocrática, um tratamento de saúde mais demorado eram razões frequentes para partidas.
Às vezes acontecia de um residente demorar mais para voltar - um mês que virava dois que virava três que virava seis que virava
oito. Naquela comunidade pequena onde a gente se conhecia tão de perto, eu era tomada por uma imensa tristeza quando os amigos mais queridos iam embora. Com a minha própria família morando do outro lado do Atlântico, eu era aquela que sempre ficava. Chegado o dia de alguma partida, eu me sentava no banco à saída do ashram mascando um chiclete chamado
saudade
e sofria assistindo meu residente-amigo caminhar para o estacionamento até desaparecer aos poucos no horizonte.
Era uma tristeza tão terrivelmente verdadeira que me assusto até hoje ao confessar que um dia depois eu sempre esquecia. A pessoa, nossos momentos, a ausência. Fora o instante da partida, a dor e a lembrança melancólica sumiam.
Um dia depois de me despedaçar feito um pão farelento ao ver um amigo sumir, eu já não sentia mais
nada.
Memória 3: Domingos
E aí tem a memória do horror.
O meu horror era feito dos domingos semanais onde todas as atividades eram suspensas e não tinha nada para fazer. Ninguém para visitar, nada para assistir, o sol subindo devagar no horizonte me informava que o presente não só é um espaço vasto cheio de possibilidades. Ele também é um buraco vazio de onde tudo pode
sair.
Inclusive o tédio e os monstros.
No meio do processo de escrita do meu último romance, perguntei ao meu marido e a uma amiga como eles descreveriam o ashram. Ambos foram residentes por um punhado de anos (a amiga continua lá). A resposta dos dois foi a mesma
- é um mundo separado de tudo.
Fiquei pensando nesta frase. Se me perguntassem, eu responderia exatamente a mesma coisa. É um mundo separado de tudo.
Pensei muito nisto. Pensei meses nesta frase-enigma, tentando entendê-la em entrelinhas que nem existem, até que ao fim descartei o aspecto espacial da separação. O ashram não é um lugar geograficamente à parte - fica a vinte minutos a pé da cidade mais próxima, a cinco minutos de carro e se parece com tudo o que tem ao redor.
Mais do que tudo, concluí que o ashram é um lugar separado no tempo. O ashram é um tipo de monumento que se abre ao eterno presente, e ao nos colocarmos ao pé desta grande estátua contemplativa o passado e o futuro vão perdendo a solidez. Nada vai acontecer. Todos os dias a mesma rotina se repete. Não estamos ligados a ninguém pela afinidade de experiências que vivemos juntos em algum ponto remoto do tempo.
Penso nas 3 lembranças e confirmo a minha hipótese: são três lembranças sobre momentos de imersão no presente.
Mas posso estar errada, também. Afinal de contas, este é só mais um texto sobre as minhas memórias, e um outro termo que combina com memória é invenção.
Notinhas & recomendações
Você sabia que a maior parte dos leitores desta Newsletter chega aqui por indicação de outros leitores? Se você acha que os textos podem deixar outras pessoas felizes aos sábados de manhã, experimente compartilhar este post com amigos, famílias, bichos de estimação:
Meu próximo livro será lançado ano que vem. Para quem gosta do universo contemplativo, 108 é um romance sobre uma mulher que deixa a repartição pública em Brasília para viver num ashram em Portugal. Qualquer semelhança não é mera coincidência: o romance é baseado na minha própria experiência, mas a história e os personagens são ficcionais.
Enquanto 108 não chega, o queridinho O mundo sem anéis segue em Kindle com um projeto visual novo e lindo. Bem biográfico, meu primeiro livro é a história dos meus 100 dias pedalando de bicicleta pela Espanha.
Descobri a Fabiane Guimarães na última semana e passei um dia inteiro lendo todas as edições da Newsletter dela - a Tristezas de Estimação, um projeto no qual ela fala sobre escrita e mercado editorial. A Fabiane - uma escritora de Brasília - publicou dois romances pela editora Alfaguara que ainda não li mas já estão encomendados. Este texto dela é lindo:
O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, exceto no último fim de semana do mês. Sábado que vem é o último de agosto, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 2 de setembro.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Li o seu "O mundo sem anéis" há alguns anos (comprei numa feira em Brasília no Conic). Algum tempo depois, fui trabalhar numa seção e eventualmente alguns colegas estavam comentando de uma ex-colega que tinha feito o Caminho de Santiago, pedalado 100 dias pela Espanha e tal e pensei que só podia ser você. Muito feliz de encontrar a sua newsletter!
aaa ainda quero ter a experiencia de viver num ashram <3