1. Deu tudo errado. Errado mesmo, começando pelas calcinhas- quinze unidades - que comprei meticulosamente para usar durante a recuperação. Fica tudo inchado no pós-operatório, menina: barriga, perna, bunda (disse uma amiga alemã), por isso passei numa loja com antecedência. No cesto, quinze calcinhas largas de algodão tamanho XXL.
2. Deu tudo errado. Antes de partir da minha casa no Alentejo para o hospital, em Lisboa, plantei seis árvores no jardim e fiz uma grande faxina. Limpei por cima da geladeira e tirei a poeira dos livros. Congelei vinte porções nutritivas de sopa para poupar o cuidador quando eu estivesse acamada por seis semanas no pós-operatório. Você se prepara demais, decretou a mesma amiga alemã que me recomendou as calcinhas. Ela tinha razão. Mesmo antes de me abrirem a barriga eu já tinha decorado perfeitamente os exercícios para o assoalho pélvico que faria em seguida. É só uma cirurgia de rotina; vai ficar tudo bem, ela reforçou.
3. Deu tudo errado. Quando fiz meu search no Google emagrecer depois de histerectomia dicas, o robô respondeu: depois de fazer histerectomia é preciso comer fibras para evitar constipação e inchaço.
4. Mas o robô não sabe de nada. O robô não sabia que eu emagreceria em vez de engordar. Ele não sabia do pós-operatório ou da hemorragia. Nem o robô nem a amiga alemã sabiam que agora estou precisando de calcinhas pequenas. Eles não sabiam que todas as novíssimas calcinhas enormes pararam de servir, nem que eu emagreceria sete quilos três semanas depois da operação.
5. Anúncio: estou de convalescença e procuro alguém que me compre calcinhas tamanho M.
6. Pega a chave do carro, pega o meu absorvente, é bastante, sim; tá escorrendo pela perna. Pega meu celular em cima da mesa, vou tentar ligar pra médica. Tomara que ela atenda. Dez horas da noite. Alô? Doutora, o que eu faço agora?
7. Eu estava em casa. Quinze dias depois da cirurgia e a duzentos quilômetros de distância do hospital.
8. Deu tudo errado. As sopas que congelei para a convalescença ficaram esquecidas no freezer enquanto me levavam de volta a Lisboa, Hospital da Luz, bloco das urgências. Primeiro andar, emergência ginecológica.
9. No telefone, a meio do caminho, minha médica: querida, venha com cuidado. Precisamos entender o que aconteceu. Vou ligar para o hospital e ver quem está de plantão. Se a hemorragia não parar você vai ter que voltar para o bloco cirúrgico.
10. Deu tudo errado. Na emergência ginecológica, o médico plantonista me limpou com pano quente e água oxigenada, abriu, fechou, avisou: colocamos uma esponja hemostática na sutura, agora é torcer para estancar. Já vamos começar o jejum para o caso de você ter que entrar na cirurgia de madrugada. O seu marido está cuidando de você?
-Tudo mudou semana passada, senhor plantonista. Agora são as minhas amigas. Elas é que vão cuidar de mim.
11. Uma semana mais tarde. De volta à casa depois do sangramento. As fotos no porta-retrato perderam a cor. O Google não previu nada disso. Não previu fotos da minha vida desaparecendo num passado desfeito, perdendo a cor antes do tempo previsto. Não previu que eu teria outros tipos de cuidado.
12. O Buda, por outro lado, já tinha dito tudo. Ele disse:
tudo é sofrimento.
O Buda também disse:
tudo que você vê diante dos olhos é impermanente.
13. Tudo pode dar errado, o Buda falou há mais ou menos dois mil e quinhentos anos. Por mais que a gente tente congelar as sopas para garantir o amanhã, a verdade é que um dia ou outro pode dar tudo errado.
14. Nossa, você tá tão magrinha. A amiga alemã mastiga um pão com queijo. Posso acender um incenso? Tá o maior cheirão de sopa aqui.
15. Gosto de estar de volta à casa. As amigas se alternam para me dar banho e preparar comida três vezes por dia. Quando elas se vão, fico sozinha. Minha gata preta e branca deita comigo na cama, no sofá, não sai do meu lado.
16. Tudo é impermanente, disse o Buda, bem mais preciso que o Google.
17. Penso nisso enquanto observo a Lillipot. É linda, minha gatinha Lillipot. Ela vira de lado e mostra a barriga peluda. Faço carinho
o nariz rosa
tudo passa (disse o Buda).
Presta atenção. Sente só o pelo dela. É macio, é tão quente. Tudo pode se dissolver num segundo (disse o Buda). Tão fofinha, a minha gata. Ela ronrona de barriga para cima. O sol da primeira manhã bate no focinho e eu lhe faço um carinho, um carinho bom, um carinho infinito. Até me esqueço. Até acredito que pode durar para sempre. Até acredito que o sol nunca mais vai embora. Olha a barriga, dela, olha, ela é perfeita, ela é toda perfeita. Até acredito que este momento vai durar para sempre. Ela é linda. Absolutamente linda.
Novidade de aniversário
Este mês o Sofá da Surina está fazendo quatro anos. É uma super data para mim. O Sofá é um projeto muito especial porque é aqui que dou forma às minhas investigações sobre o encontro entre espiritualidade e criação. Nunca imaginei que aquele grupo de 40 amigos que recebeu minhas notícias em 2021 se transformaria uma comunidade de mais de 1800 pessoas.
Já faz tempo que eu venho pensando sobre uma forma de continuar escrevendo toda semana, manter os textos gratuitos e ao mesmo tempo fazer com que o Sofá seja financeiramente sustentável. Então aqui está: agora você pode apoiar o Sofá da Surina. Haverá encontros mensais, sorteios, e um pouquinho de conteúdo exclusivo para apoiadores, mas os textos semanais do Sofá vão continuar aberto e gratuito.
Se você lê com frequência, considere entrar neste círculo de criação e dharma apoiando o Sofá da Surina e todo o trabalho-estudo-práticas por trás dele:
Todas as pinturas que ilustram o Sofá (inclusive a de hoje) são obras minhas à venda. As prints das obras são produzidas em estúdios bem especiais seguindo os padrões de galerias e colecionadores, depois assinadas em tiragens limitadas. Entregas para o Brasil e para a Europa. Detalhes e encomendas por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
sempre bom poder contar com uma rede de apoio no momento em que precisamos. como diz o ditado, que tem amigos tem tudo.
Abraço gigante, querida Surina ✨💖✨