Nas últimas semanas do ano passado entreguei-me à inutilidade. Estava exausta de listas mentais e completamente destituída daquele ímpeto genuíno que nos leva a criar. Todos os meus esboços pareciam iguais, criados muito mais pelo hábito repetitivo do que pelo desejo. Quem sou eu?
Não era bloqueio criativo; era mais a maldição nascida da falta de tempo. Neste presente maluco é preciso estar atenta para não cair no automatismo. Qualquer objeto que eu tocava se tornava imediamente estéril e despido de verdade, por isso parei todos os meus projetos e fui fazer tricô.
Nos últimos vinte dias: 1. terminei um cachecol, 2. mergulhei nas práticas budistas, 3. construí um móvel novo para o atelier.
Cheguei a esquecer que um dia tinha sido artista & escritora. Considerei a possibilidade de passar o resto da vida produzindo cachecóis coloridos para os meus amigos.
Então o ano virou e os tentáculos da vida começaram a me chamar
hora de voltar para a máquina de cortar grama, baby
, e precisei juntar toda minha força de vontade (& economias) para continuar parada no meio do jardim sem responder ao canto de sereia do samsara. Em vez de sair criando obras que não me diziam nada, comecei a tricotar um gorro roxo.
Tricotei, tricotei, tricotei, até que um belo dia aconteceu: umas ideias diferentes começaram a aparecer. Com a naturalidade de quem nunca esteve longe dos pincéis, entrei no atelier, peguei um pedaço de papel e passei oito horas ininterruptas pintando um auto-retrato.
Ao terminar, olhei para o trabalho e dei-lhe um título:
Vajra Heart.
Bonita ou feia? Boa ou ruim?
Tudo que posso dizer é que era uma pintura esquisita, graças a Deus. Notei, ainda, que Vajra heart não estava completa - faltava alguma coisa.
No dia seguinte, voltei ao estúdio e produzi a segunda imagem da série, mesmas proporções e cores, só que agora com a modelo de costas.
Vajra heart II.
Vajra é uma palavra do sânscrito que indica algo indestrutível e ao mesmo tempo poderoso. O termo faz associação direta com o diamante e com os relâmpagos das tempestades: uma força avassaladora & um objeto que não pode ser esmagado.
Se você pratica o budismo tibetano, com certeza tem familiaridade com o termo: vajra é o nosso pão com queijo de cada dia. Tecnicamente, aliás, a tradição tibetana dos ensinamentos do Buda leva a palavra na própria designação. O que conhecemos como budismo tibetano é, mais precisamente, o budismo vajrayana. Ou seja: o caminho do diamante.
Pensando agora, o budismo vajrayna parte de uma referência bem bonita. Quero dizer: esta forma de enxergar o conhecimento profundo da realidade – os ensinamentos, ou dharma – como algo indestrutível e poderoso.
Imagino o Buda sentado sob a árvore no norte da Índia, 2500 anos atrás. Ele está lá há um tempão, sozinho e em silêncio. Vulnerável, sem comer, incapaz de importunar uma formiga. Convicto de que algo precisa mudar.
Tipo eu, nesta virada de ano.
Na sétima semana sentado sob a sombra daquela imensa copa de figueira, o rapaz de trinta e poucos anos tem um insight maravilhoso. Olhando de fora, tudo continua igual: o Buda ainda está magro e em jejum.
A diferença é que agora podem fazer o que quiserem com o Buda; já não importa mais. Agora ele sabe, agora ele não tem mais medo, agora ele se iluminou. Ele conhece as coisas de verdade, não só da boca pra fora, e saber é ter algo que ninguém pode tirar de você.
Porque o Buda sabe algo de verdade, ele tem a seu lado uma força poderosa do universo. O que ele sabe de verdade é indestrutível.
O que vive dentro de mim é um mistério. Ao me deixar em paz por duas semanas, passei um tempo no atelier e encontrei meu vajra heart.
Criar é consultar um oráculo, o que é que tem aí?
Aí aparece uma obra, uma obra que é sua e ao mesmo é maior que você. É a obra te dá a resposta de quem você é. Tenho convicção que as minhas criações sabem mais de mim do que eu mesma.
Sempre achei que o coração era um órgão mole e vermelho, fraco e que se parte. Talvez não seja. Talvez meu coração seja um órgão azul e mole, bem mole, e ainda assim indestrutível e poderoso.
Em cima do meu coração há um pássaro preto. Não sei o que está fazendo lá. Comecei pintando um pássaro branco para simbolizar a paz, mas não rolou. Estava fora de lugar; não é o pássaro branco que pertence ao coração azul. O coração vajra é o assento de um outro tipo de pássaro, um pássaro imprevisível e indecifrável como o cosmos.
O que vive dentro de mim é um mistério.
Notinhas e recomendações
-Uma novidade: em 2025 o Sofá da Surina passa a ser quinzenal. Já tivemos todo tipo de periodicidade por aqui, e no último par de anos a newsletter foi semanal. É minha periodicidade preferida, aliás: escrever toda semana é uma experiência muito especial de intimidade com os leitores que me forçou a criar uma prática consistente de escrita.
Por que mudar, então? A resposta é que este ano começa com outras aspirações. Em 2025 quero ter mais tempo para realizar minhas práticas budistas e explorar caminhos novos na pintura. Estamos na primeira semana de janeiro e já vejo na agenda as marquinhas dos dias de retiro. 2025 é um ano especial porque vou ter a chance de receber ensinamentos com os quais venho sonhando há muito tempo.
Na escrita, estou bolando um curso online para escrevermos juntos a partir de certos temas. O curso vai ser um laboratório expandido das minhas próprias experimentações com a escrita, e acho que vai ser bem legal. Ainda estou desenhando o formato, e quando estiver mais de pé eu aviso por aqui, tá?
- A Natércia Pontes chegou ao Substack com um monte de texto bom:
Se você chegou aqui agora, quero te contar que sou autora de dois livros bem lindos. Você pode conhecer e comprar o 108 e O mundo sem anéis aqui (entregas para todo o Brasil).
-… ou, se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
ficaram lindas as ilustrações. davam belas capa e contracapa de um caderno. =)
Obrigado por compartilhar 🤎