A lua cheia mais bonita do ano é sempre a de maio.
Ontem à noite olhei para a esfera brilhante e enxerguei um coelho por dentro da superfície rochosa. Enxerguei um elefante branco e também a cura para o sofrimento de todo e qualquer ser humano. Do alto do céu escuro, bandeiras de prece sopraram uma aspiração que ouvi aqui embaixo
que você seja feliz
, disseram.
Assenti com a cabeça, concordando.
Vesak é o dia em que se celebra o Buda Shakyamuni – o Buda histórico, exatamente aquele no qual a gente pensa quando imagina uma estátua zen.
O calendário que rege o Vesak é lunar. Cada ano a celebração cai numa data diferente, sempre no primeiro dia de lua cheia desta época de maio. A lua cheia de maio foi ontem à noite, então você está recebendo esta Newsletter tecnicamente logo-depois-do-Vesak.
Na tradição cristã, temos o natal para celebrar o nascimento, enquanto na páscoa celebramos o sacrifício seguido da ressurreição de Jesus.
O Vesak é tudo junto. No mesmo dia do calendário (mas em anos diferentes), o Buda nasceu, atingiu a iluminação e morreu.
Isto faz do Vesak uma data muito especial.
Nascimento do Buda
Gosto de saber que o Buda é taurino. Como o calendário é lunar, as datas variam. Há uma chance pequena de ser geminiano, mas taurino é a aposta mais promissora.
Jesus, por outro lado, era capricorniano. Penso nisto, e por isto quero dizer que estes dois humanos chegaram até nós sob a égide de signos de terra - os signos mais ligados à esfera material, tratados algumas vezes como desinteressantes. Astrologicamente imprevisíveis, Jesus e o Buda Shakyamuni negam a marca dos que vêm ao mundo com uma estrela iluminada na testa
- Qual o signo de uma pessoa sábia?
, alguém pergunta. Minha resposta jamais apontaria para a sensatez restrita de um dos três signos de terra. Um líder espiritual viria sob com a aura abnegada de peixes
o comando visionário de aquário
a expansão insuperável de sagitário
o amor incondicional de um canceriano
a liderança nata de um leonino.
O que aprendo com o Buda taurino é a beleza despretensiosa da materialidade:
só alguém que conheceu de perto o desejo pode elaborar com tanta precisão um mapa para o desapego
Iluminação
Quando atingiu a iluminação, o príncipe Sidarta virou Buda - aquele que despertou. A descoberta da iluminação foi tão imensa que nos instantes seguintes ele julgou que seria impossível transmiti-la.
É que o insight é acima de tudo uma experiência íntima, instransferivelmente pessoal.
Foi preciso uma assembléia de seres celestiais para convencê-lo a tentar ensiná-la a outros seres humanos. Pouco tempo depois, o Buda já está sentado com seu primeiro grupo de discípulos num campo próximo de Varanasi. É ali, nas cercanias da cidade ancestral indiana, que ele resume o que viu na iluminação e nos apresenta o ensinamento essencial das 4 nobres verdades:
A nobre verdade do sofrimento.
A nobre verdade das causas do sofrimento.
A nobre verdade da cessação do sofrimento.
A nobre verdade do caminho que leva ao fim do sofrimento.
É tudo muito singelo. Parece que as 4 nobres verdades não dizem nada. Mas elas dizem muito, e dizem assertivamente.
Primeiro, o Buda afirma que o sofrimento existe e que ele é a realidade pão-com-queijo da existência. Todo mundo tem a experiência do sofrimento.
Depois disso, ele afirma que o sofrimento tem causas, que é possível eliminar estas causas e parar de sofrer.
Por fim, o Buda anuncia que descobriu um caminho para acabar com o martírio da vida.
Imagina se o Buda dissesse que não existe sofrimento? Ou que o sofrimento não tem fim e que não existe um jeito de fazê-lo cessar?
Olho em volta e vejo muito sofrimento. 2023; nunca vi mais sofrimento que isso. Tristeza, desconforto, calamidade, o mundo revirado. Parece que todo mundo está exausto.
Com sua promessa de acabar com o sofrimento, o Buda Shakyamuni é o ser mais contemporâneo que existe.
* * *
Morte
A morte não é bem morte. Quando alguém iluminado morre, chamamos de paranirvana ou mahasamadhi.
O Buda não morre. O Buda deixou a roupa de corpo que vestiu há 2500 anos.
Todos nós temos uma natureza búdica, por isso o Buda – aquele que se iluminou – nunca morreu. O Buda é a mesma semente perene, em estado dormente
o Buda é a mente sem obstruções, aquilo que vê sem limites
o infinito
um coelho que me olha do céu
o amor no coração de todos os seres
vivo e presente.
Quem é o Buda mesmo?
Não sei, mas sei que é bom. Levo o rosto dele comigo pra todo lugar que vou; tenho uma foto do Buda na parede do quarto.
Old Path ,White Clouds
É o título do livro do Thich Nhat Hanh no qual ele conta a história do Budha Shakyamuni.
Thich Nhat Hanh (1926-2022) foi um monge budista. Apesar de ter sido ordenado jovem, sentia-se distante do Buda. Para sentir-se mais próximo, escreveu este livro contando a história do Buda. Queria reconhecer dentro de si, seguindo o ritmo da escrita, o Buda que estava nas escrituras, na prática, na meditação, nos mantras, no templo, em tudo.
Apesar da vasta pesquisa na qual está apoiado, o livro é escrito de um jeito simples e bom de ler. Acho linda a história de criação deste livro.
Escrevo para ficar mais perto de mim. Ele escreveu a história do Buda para conhecer o Buda. A escrita é uma forma de religação.
A imagem do Buda é mais do que uma imagem
Dizem que a simples possibilidade de olhar a imagem do Buda é algo auspicioso. Mesmo que não reconheçamos quem é, a imagem de um ser que transcendeu o sofrimento tem o poder de ficar guardada como uma semente na consciência. Mais cedo ou mais tarde, nesta vida ou em outra, a semente pode brotar e a pessoa que enxergou a imagem do Buda fica inspirada a transcender o próprio sofrimento.
Em 2019, descobri que nasci num dia de Vesak, como o Buda. Se tivesse nascido em 1980, o príncipe Sidharta teria vindo ao mundo no mesmo dia que eu.
A descoberta me deu grande alegria. Naquele ano prometi que desenharia uma imagem do Buda por ano, sempre no Vesak, para que a imagem dele pudesse ser vista por vários seres.
A começar por mim.
Aspiração de Thich Nhat Hanh para o próximo Buda
“It is probable that the next buddha will not take the form of an individual. The next buddha may take the form of a community, a community practicing understanding and loving-kindness, a community practicing mindful living.” Thich Nhat Hanh, Friends on the Path
Este ano, pintei o Buda com um elefante branco.
O elefante branco é um sinal auspicioso que anuncia tempos melhores, milagres, algo maravilhoso, a mente desobstruída, a esperança que já se realizou e podemos encontrar facilmente, olhando com mais cuidado para o que está ao nosso lado.
Neste Vesak 2023, minha aspiração é a de que tenhamos todos um ano auspicioso e cheio das epifanias que nos lembrem que em meio ao sofrimento há também a alegria de viver.
Tudo Shakyamuni
Gosto de ouvir o mantra do Shakyamuni Buda enquanto pinto meu Buda do Vesak todos os anos.
Gosto também de ouvir esta linda recitação do Sutra do Coração pelos monges da ordem do Interser, fundada pelo Thich Nhat Hanh.
Aqui um artigo em inglês explicando melhor do que eu as 4 Nobres Verdades.
*O texto embaixo da pintura do Buda é uma versão em inglês para o texto original, em sânscrito, da escritura Sutra do Coração - conhecida, também, como Prajnaparamita. A versão inglesa é do fantástico lama Chogyam Trüngpa, e pode ser encontrada no livro Além do materialismo espiritual, publicado com este título no Brasil pela Lúcida Letra.
Ah!, e que vocês sejam felizes sempre. Um lindo Vesak e até a próxima
#35.Vesak
Obrigado pelo texto! Ontem fiquei um bom tempo observando a lua, um pouco chateado com a vida em geral. Sinto demais isso de estarmos todos exaustos de um eterno 2020: ainda é maio, mas no trabalho sinto como se fosse novembro e eu já operasse na reserva de combustível. Que venham o elefante branco — e o Buda — nos trazer um pouco de esperança e o caminho para o alívio. Feliz Vesak!
A ilustração do Buda ficou linda <3