Para que serve o seu sonho?
Semana passada eu casei.
Casei com um vestido que era uma espécie de bolo com inúmeras camadas de chantilly sobrepostas. O tomara-que-caia até a altura do joelho com quatro saias de tule realizou um procedimento mágico: assim que o vesti, virei noiva.
Confesso que me senti estranha dentro daquela parafernália. Sinto-me mais confortável em hábitos monásticos do que nos matrimoniais, mas topei com relutância porque casar era importante para o Lee.
Casei com um Vera Wang - uma peça de haute couture caríssima que chegou até mim por vias misteriosas. Eu já tinha comprado outro, um vestido de 7 euros com estampa floral, modestíssimo, que levei para ajustar assim que o casamento foi confirmado. Mas ele resistia – quanto mais tentava achar solução, menos parecia possível ajustá-lo.
-Eu sei que pode parecer bizarro, mas há uns anos alguém me doou um monte de roupas, incluindo um vestido de noiva, disse a amiga costureira, incrédula.
Fechamos a lojinha de costura e dirigimos até a casa dela. No quartinho das roupas de brexó, entre araras de casacos de nailon, o vestido branco repousava brilhante sobre uma pilha de moletons e calças jeans.
A primeira coisa que vi foi a linha de botões nas costas. Eram botões lindos, perfeitamente alinhados. No momento que a minha mão encontrou a estrutura do corset, soube que estava diante de algo especial.
Um vestido de noiva tem algo de creepy, de brega, de romântico, de icônico. É tipo vestir um sonho. Qual é o seu sonho?
Tirei a roupa. Um vestido Vera Wang perdido em São Martinho das Amoreiras. Minha amiga subiu o zíper entre os botões brancos. O vestido me servia perfeitamente; era como se tivesse sido feito sob medida para mim.
Qual o seu sonho?
Nunca sonhei em casar, mas sempre quis encontrar ocasião para usar um fascinator - um destes adereços da elite britânica que as mulheres aplicam no cabelo. Gosto de tudo neles, a começar pelo nome: fascinator.
A primeira vez que vi um fascinator foi num evento da família do meu marido. Mulheres e homens sentavam em seções separadas da sinagoga - ele é judeu -, e as senhoras casadas todas tinham penas e flores e pérolas brilhantes pulando da cabeça. É para ser bonito? É para ser engraçado? É para ser ridículo? É para ser chique?
O senso estético britânico me parece incompreensível. Fiquei sem entender nada, a não ser preciso de um treco de desses. Depois que o evento acabou, fomos à recepção na casa da tia do Lee, uma senhora apresentável de 70 anos.
O fascinator dela era o maior de todos, uma adereço imenso de penas pretas reluzentes.
Quando decidimos casar e antes do vestido aparecer, a primeira coisa que fiz foi procurar um fascinator online para usar na cerimônia. No site do Philip Treacy - o designer de fascinators mais famoso do mundo - a minha obsessão ganhou outras dimensões. Havia peças inspiradas em arquitetura, góticas, românticas. Fascinators não são um acessório; um fascinator é uma escultura de vestir.
Li uma entrevista do Philip Treacy em seguida, e uma das suas declarações me conquistou: a de que um fascinator não cumpre função alguma. Não ajuda a prender o cabelo ou dar mais sustentação ao penteado. Não protege do sol, não faz absolutamente nada.
O propósito do fascinator é puramente estético: sua única função é ser lindo.
Ainda bem que o modesto vestido floral não me serviu. Era muito sensato para viver um ritual de passagem.
Depois do casamento, comprei mais dois fascinators baratex. Se um dia ficar estupidamente rica, comprarei um fascinator daquele designer britânico. Um objeto tão lindo, tão artístico, tão incapaz de ser um adejtivo só. Brega, exagerado, esquisito. Espalhafatoso. Como meu enorme vestido de noiva que não serve a obrigação nenhuma, exceto à beleza.
Se o seu sonho tivesse uma cor, qual seria?
Os meus sonhos são dourados ou azul roial.
Sei lá, às vezes a gente precisa do inútil, do que é especialmente belo. Do que não tem função alguma. Às vezes a gente precisa da aura mais do que dos números. Acho que a gente precisa da aura sempre. Um vestido de noiva ou uma fruta perfeita ou uma noite sem vento, ou um café com leite na solidão da manhã. A aura está em toda parte. Às vezes é bom nos prostrarmos aos seus pés. Quando o resto acaba, o que sobra é a aura.
Às vezes a gente precisa de um ritual de passagem porque é impossível aprisionar o tempo, por isso penduramos adereços e transformamos o invisível num pinheirinho de natal para criar uma memória bonita
: eis aqui um momento no qual eu celebro a vida.
Um casamento é um ritual de passagem à sua maneira. Inútil, lindo, um curso de rio onde colocamos uma placa para acenar o simples fato de que tudo aquilo vai se transformar no minuto seguinte. A gente se encontra num momento qualquer, faz promessas e usa um vestido ridículo feito uma nuvem, um fascinator, come junto, a última dança vem, convidados sumindo no estacionamento, tudo, inclusive isto aqui, tudo vai passar.
Notinhas e recomendações
-Na outra ponta do espectro, a Aline Valek sobre neurose com números:
-Editoria: no mês de julho vamos falar de temas bem variados. Depois deste texto sobre vestido de noiva & rituais de passagem, passamos para a segunda edição do mês com um texto sobre uma das minhas escritoras preferidas, a Natalie Goldberg. Quero olhar um pouco sobre a sua habilidade de falar do o mundo enquanto escreve obras profundamente autobiográficas. Por fim, na última edição do mês, o tema vai ser consistência e prática de escrita.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Que delícia de texto. E amei o vestido. Fui lendo o texto e me vendo um pouco nele, porque acabei casando como manda o figurino e eu não tinha um plano pra isso. Achei um francês numa floricultura em Paris que se animou com o fascinator e decidiu fazer um pra mim com gipsofila natural. O resultado foi que o amigo que o levou pro casamento teve que ir regando e rolou um quiprocó na Ryanair. Mas o fascinator chegou lindo e foi a grande estrela do casamento, para no dia seguinte repousar numa bandeja d’água e ficou lá até morrer. Acho que vc ia curti-lo. Muito amor pra vocês ❤️
primeiramente, parabéns de novo :)
eu amo o fato de que nós casamos com apenas 20 dias de diferença.
não sei nada sobre fascinators, mas me identifiquei com o relato pq eu tive o mesmo percurso com o véu de noiva.
eu casei toda de preto, com um vestido lindo de fast fashion que era tudo que minha bolsa de estudante de graduação daria conta. mas o véu foi branco e com ele, no meio do evento onde eu casei - que não era minha festa de casamento, mas do qual me apropriei de certa forma -, eu era identificada como A Noiva. recebi regalos em forma de comida e bebida dos poucos amigos presentes e de inúmeros desconhecidos. foi do jeito que eu nem sabia que queria casar.
esse comentário foi muito mais sobre mim do que sobre você, mas porque no seu texto eu enxerguei a mim mesma.
esse é o poder da comunicação.
muito amor para você, para mim, para os nossos amores e para todo mundo que forma essa bela e complexa relação entre quem escreve e quem lê.
💫