#44. Você tem 5 minutos para ouvir a palavra dos Gatos?
Lilly & Haiku, os mestres zen do Alentejo
Voltei do Caminho de Santiago há um mês trazendo comigo uma dose inesperada de lucidez
: agora vai lidar com as coisas escondidas debaixo do tapete, vai.
Acordei de mau-humor, numa ressaca que não incluiu nem a parte boa do vinho do dia anterior. De manhã logo cedo rumino entre os dentes
life is a bitch
enquanto caminho da cama para a cozinha vestida com uma camiseta e uma calcinha preguiçosa de quem não teve energia nem para colocar pijama. Nas últimas semanas tenho pensado sobre amizades, sobre exílio e sobre o sentido profundo da vida. Aliás, será que sou mesmo uma exilada?
Sem respostas, resta-me caminhar até a bancada
água esquentando na chaleira
uma colher de sopa de café em pó
um arranhão na perna.
Dói.
Quem está aí?
Dois pares de olhos verdes falam comigo:
-Você esqueceu meu café da manhã, por acaso?
Vivi com alguns mestres zen – todos eles gatos. (Eckhart Tolle, The Guardians of Being)
No começo eram três os gatos filhotes que vieram ao mundo diante de uma ruína na Aldeia das Amoreiras, Alentejo. Enquanto eu comemorava os 43 na varanda do vilarejo vizinho com dez amigos e meu próprio gato de estimação, os filhotinhos respiraram a primavera do hemisfério norte pela primeira vez.
Os gatinhos e eu fazemos aniversário no mesmo dia.
A mãe era uma longilínea gata branca de pernas compridas e pelos perfeitos. Mãe solteira: o pai nunca foi avistado cuidando dos filhos na região. Pais, na verdade - pelo menos dois, porque a filhote fêmea era preta e branca ao passo que os dois outros, machos, têm pelo cinza-tigrado.
Dificilmente saberemos se havia outros irmãos naquela ninhada. Se fugiram, foram abandanos ou se morreram.
O que sabemos, isso sim, é que a mãe dando de mamar ali na ruína estava magra. Não é fácil conseguir comida por aqui, a população felina nas ruas da Aldeia é uma gangue competitiva de bichos robustos, e a Gata – vamos chama-la assim - perdia peso a olhos vistos. Vê-se bem a sua espinha sob o pelo, os ossos da bacia saltando, os olhos infeccionados soltando pus.
Saídos da barriga materna para a atmosfera do nosso planeta, os filhotes não chegaram a enxergar o mundo. Quando veio a hora de abrir os olhos, descobriram que as pálpebras grudadas de inflamação anunciavam um universo mais interno feito de sonhos felinos e do corpo tátil da mãe
as tetinhas sempre ali, ao alcance das patas
a barriga quentinha no escuro
até que um dia a mãe desapareceu
as tetinhas também
e o mundo ficou
estranho.
O chão, frio.
Os olhos ardiam.
-Qual é o nome deste troço seco?
- O nome disso é ração
, respondeu a voz numa língua alienígena de primeira vez.
Nossa amiga S. é enfermeira veterinária, mas não só isso
: ela também é dona da ruína. A caminho do jardim, um dia de manhã encontrou três filhotes cegos abraçados a uma gata branca magra. S. separou os filhos da mãe, pingou colírio nos quatro pares de olhos, deu-lhes comida e um quartinho para morar na casa da vizinha.
S. os visitava todos os dias, várias vezes por dia. A porta ficou aberta com um pedaço de papelão tampando a entrada. Os filhotes do lado de dentro; a mãe do lado de fora. O maior e mais forte foi o primeiro a partir. Ganhou o nome Tejo e foi viver com uma holandesa, dois gatos e um labrador numa fazenda próxima daqui.
A menina e o outro rapaz ficaram no quarto. Ganharam de S.: uma vaquinha, um rato e um cavalinho de pelúcia. Vários tapetes, uma caixa de papelão e outra de areia.
Um dia os bichos abriram os olhos. Não entendiam muito bem a presença de S.; era a primeira vez que viam um humano. Na falta do reconhecimento, era como se S. não existisse: os gatos a tratavam como parte da mobília. A Gata às vezes aparecia na porta. Do lado de dentro do quarto, a menina não se importava com a presença da mãe, porque nasceu sem medo nem
tentáculos.
O menino, por outro lado, miava de volta, e tinha uma voz tão desesperada quanto a dela.
Em dias assim, S. ignorava os perigos da doença ocular no corpo ainda não formado dos filhotes e deixava a mãe entrar por alguns minutos e lamber as costas do filho.
“- Qual o seu nome?, Coraline perguntou para o gato.
- Eu sou a Coraline, e você?
- Gatos não têm nome, respondeu o bicho.
- Não?
- Não, disse o gato. Já vocês, as pessoas, sempre têm nome. É porque não sabem quem são. Nós sabemos quem somos, por isso não precisamos de nome.
(Neil Gaiman, Coraline, publicado no Brasil pela editora Intrínseca)
Haiku é um tipo de poema japonês de dezessete sílabas divididas em três linhas. No Brasil este tipo de poema é conhecido como haicai, mas eu gosto mais da pronúncia original
: Haikus. Eles são lindos. Simples e despretensiosos, o máximo da elegância. Escrever haikus é tipo uma mini-tradição no zen budismo. O que os haikus fazem é suspender a mente num espaço aberto e livre; um haiku bem escrito nos dá de presente um novo ângulo do mundo que sempre esteve diante do nosso
nariz.
Dei-lhe esse nome maravilhoso porque o olhar dele é especial.
Nosso Haiku tem uma cicatriz na córnea e perdeu um pouco da visão no olho direito. Não sabemos muito bem o quanto enxerga, mas esta condição não parece afetá-lo. Além disso, Haiki é estrábico, o que lhe confere o olhar mais adorável do planeta.
De vez em quando ele entra em transe no sofá e começa a mamar a capa da almofada. Tenho a impressão que mesmo à beira de completar três meses ele ainda sente falta da mãe.
the farm cat
makes Buddha’s lap
a pillow
Kobaiyashi Issa (1763-1828)
Simbiose
Tenho dificuldade de voltar de Santiago de Compostela.
Trancada em casa com meus novos bichos há dez dias, também tenho dificuldade de voltar ao reino dos humanos. À língua humana feita de trocas, às tarefas domésticas e aos deveres cívicos. Tenho dificuldade de voltar à boa educação linguística e aos objetos inúteis. Por exemplo: à saboneteira. Que civilizacão inteligente cria tantos objetos para existir no mundo? Quem somos nós que inventamos rodinho de pia e a saboneteira?
Gosto de passar a tarde com eles no sofá turquesa. Os gatos se enrolam em torno do meu corpo. Leio The Left Hand of Darkness, da Ursula Le Guin, e o sofá turquesa vira o planeta no qual a história dela se passa. Aqui tudo é maravilhoso. Lilly estica a pata e encosta o nariz minúsculo no meu. Um cumprimento felino. Será que ela pensa que eu sou gato também? Será que ela sabe que eu sou um ser vivo?
Às vezes acho que eles pensam que eu sou uma estrutura geológica móvel, tipo uma montanha que se mexe e lhes oferece comida. Talvez um gigante desengonçado. Deitados no sofa turquesa depois do café da manhã, Haiku e Lilly discutem minha natureza felina imperfeita:
Coitadinha. Ela tem uma pronúncia esquisita, não sabe brincar direito mas tem um bom coração.
“Humanos que pensam que nós não os entendemos é que são burros” (Hiro Arikawa, Relatos de um gato viajante, publicado no Brasil pela editora Alfaguara).
Notinhas
O Sofá chega à sua caixa de email sempre nas manhãs de sábado, mas hoje ele chegou com algumas horas de atraso. Peço desculpas, mas é que a última semana foi um vórtex para dentro de outro dimensão. De sábado a sábado, passei horas decifrando códigos HTML e outros mistérios do mundo das máquinas. Estou reeeditando a versão digital do meu primeiro livro O mundo sem anéis para uma edição mais visualmente parecida com o livro físico, esgotado há alguns anos. Muita gente pede uma segunda edição, então comecei reeditando o Ebook (assim que estiver pronto eu conto mais por aqui!). Entre aquele universo de códigos malucos, devo minha sanidade esta semana à Lilly e ao Haiku, os grandes mestres zen do Alentejo a quem dedico esta edição.
I don't know where prayers go,
or what they do.
Do cats pray, while they sleep
half-asleep in the sun?
Mary Oliver, "I happened to be Standing", do livro Devotions (© Peguin Press, 2017).
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Boa sorte na diagramação! Pra voltar ao mundo, só por meio de focinhos mesmo 💛