Estou de volta, mas ainda não sei como.
Quanto tempo passou, mesmo? Onde estou? Já é quase abril, sério?
Gente... e meu ano ainda nem começou.
Quando entrei na mesa de cirurgia, no dia 4 de fevereiro, era inverno e fazia frio. A hemorragia aconteceu durante a temporada de chuva, duas semanas depois.
Março entrou, a primavera também, e bem no dia do equinócio me enfiaram num carro na direção de Lisboa para a consulta pós-cirúrgica das seis semanas. A médica me recebeu na clínica particular com cabelos loiros escovados e unhas perfeitas pintadas de esmalte preto.
- Ufa, ainda bem que cicatrizou. Agora já pode tirar as meias de compressão e começar a andar, minha querida.
Minha querida - a sentença mágica.
A médica sempre diz minha querida quando chegamos ao fim de um bloco conciso de conversa. É seu modo de dar fechamento e passar ao próximo assunto, que muito provavelmente terminará com a mesma expressão.
Queria muito que você, aí do outro lado, pudesse entender precisamente como soa esta linha tantas vezes repetida por ela, mas a palavra escrita não consegue alcançar precisamente a minha intenção. Minha querida tornou-se
lema
hino
o próprio mantra da paz.
Minha querida, na voz da doutora Janete.
Sempre que bate medo sobre o que vai acontecer com meu corpo; toda vez que olho o b s e s s i v a m e n t e para o futuro tentando marcar “x” nas respostas certas para perguntas que ainda não tenho a mínima ideia quais serão
- diante de todas as incertezas, repita comigo
: minha querida
e tudo que é ruim se dissolverá.
De volta à casa: de repente, posso andar. Posso lavar a louça e dobrar o corpo adiante para colocar a comida dos gatos nos três potinhos.
Haiku não sai de perto de mim desde que voltei. Mister Gray é um David Bowie absoluto, o gentleman genial que me ama sem apego, I love you, babe pero no mucho. E por fim, Lillipot - a Grande Gata Malhada. Ao me ver de pé esta manhã, começou a dar uns miados alegrinhos.
Será que está comemorando? Que está feliz por mim?
Claro que sim. Por que não estaria?
Os bichos sabem tanto, os bichos sabem muito. Eu é que sou estúpida de duvidar da capacidade que eles têm de entender quase tudo.
Dois tipos de felicidade
Hoje está fazendo um sol lindo e este é um texto desgrenhado, sem pé nem cabeça como eu. Sozinha na varanda de casa, confirmo que restou muito pouco de quem eu era. Dos planos de antes da cirurgia, ficou praticamente nenhum - os livros em andamento perderam o sentido, assim com as ideias de reforma da casa e a nova série de pinturas que estava planejada. Ah! E no meio dos processos de saúde & vida & morte, me separei.
Então há tristeza.
Mas não apenas.
Tenho obrigação de enunciar minha imensa felicidade no meio disto. Sinto-me genuinamente feliz, e é uma felicidade de leveza. Uma felicidade de todas as possibilidades abertas. Aquela felicidade mágica do dia que antecede uma grande viagem, sabe? Do: agora que acabou, tudo é possível.
De dentro desta felicidade, escrevi um livro infantil pela primeira vez. Só para tentar. Comecei a estudar Florais de Bach porque os vi envoltos em arco-íris dentro um sonho. De dentro desta felicidade, arrumo a mala para uma série de retiros com amigos novos, em lugares que nunca estive, a partir de abril.
Mas não é só isto. Sobreposta a esta primeira, há uma outra espécie de felicidade. É uma felicidade que vem de outro solo. Não é do eu posso tudo agora - não. Ela é de outra sorte.
Estou falando aqui de uma felicidade nascida d’aquilo que sobra na terra arrasada.
Talvez não seja tão sexy quanto a primeira, mas é um tipo de felicidade, sem sombra de dúvida. Uma felicidade sóbria. É a felicidade das velhas, por isso eu a amo tanto. É uma felicidade maravilhosa, que experimento pela primeira vez: a de saber que tudo pode implodir, mas eu continuo. Eu e o dharma. Eu e a escrita. Eu a falta de arrependimentos. Eu e as escolhas que fiz.
Nossa: como gosto destas escolhas.
Pode ser pouco, mas diz muito. E ainda tem um bônus: como a escolha que fiz há doze anos foi dedicar-me ao dharma, nada muda tanto, mesmo que a vida mude toda. Continuo praticando, como antes e, se eu for sortuda, como amanhã e depois e depois.
É uma grande felicidade, a das velhas.
E hoje é esta a felicidade que eu desejo para vocês, também.
Notinhas
Antes de tudo: obrigada pelo carinho e desculpa pela incapacidade de responder todas as mensagens em pouco tempo. Estou indo devagar. Ah! E aqui vai uma agradecimento pela paciência que vocês tiveram com estes meus últimos textos tão pessoais. Agora que já posso sair de casa, a tendência é que as próximas edições do Sofá também respirem um pouco mais para fora da porta.
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Recomendações
Esta linda edição da Anacronista, que me fez chorar:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Gostei da sua perspectiva em relação ao fim e à felicidade do que pode vir na sequência. Quando me separei, senti que parte da minha identidade foi embora, mas coube a mim recriar a forma de ser e ver o mundo.
Surina, que alegria, ufa, minha querida! Agora vem a primavera e tudo fica ainda melhor. <3