O oceano onde nadam os peixes de preciosas virtudes tem uma cor neste nosso planeta azul
: a cor bordô
, que cobre o corpo perfeito de criaturas meio-humanas, meio divinas
meio anjos, meio aliens.
É mulher ou é homem? Às vezes preciso chegar mais perto para descobrir. Às vezes nem assim. Aliás: importa?
Os monges budistas estão fora dos padrões desse mundo há dois milênios, provavelmente muito antes de inventarem a palavra queer.
De óculos escuros à la Bob Dylan, ou
tirando um selfie por trás da fumaça da xícara de café, ou
na mesa do restaurante, comendo pastelzinho cozido, ou
caminhando de chinelo Ryder na rua estreita, entre os escapamentos dos carros, o pano protegendo a cabeça careca do sol.
São centenas de monges aqui em Bir. Afinal de contas, esta é uma das mecas indianas do budismo tibetano.
Há algo de profundamente misterioso e secreto na presença dessas criaturas vestidas com o mesmo tipo de traje da época do Buda. Seguindo o calendário lunar sem nunca perder datas auspiciosamente incompreensíveis, eles praticam rituais em templos que só ocasionalmente visitamos e recitam mantras cujas sílabas consagradas contêm o mágico poder de transformar nossas tendências mais agarradas e teimosas.
Olhando de perto, são poucas as coisas que nos transformam de verdade - a morte, uma tragédia, o nascimento de alguém.
Ou um mantra em sânscrito.
Sempre que os vejo, tenho a impressão de que os monges foram esquecidos por acidente na Terra. É por isso, só por isso, que podemos dividir o mesmo planeta com eles.
Os telefones Nokia quase não existem mais, nem o console do Atari, nem profissões como datilógrafos ou relojeiros. Eles, por outro lado, persistem
vestindo roupas de mais de dois mil e quinhentos anos atrás.
Será que os hábitos monásticos confeccionados nos anos 2000 têm um bolsinho pra colocar a carteira ou o celular?
Os ensinamentos duram dez dias e estima-se que sejamos 1500 pessoas participando. O pátio diante do monastério Choki Ling, em Bir, está todo enfeitado com pinturas tradicionais tibetanas - as tangkas - e com panos dourados, em brocados de seda.
A monja que senta ao meu lado conta que, antes de se ordenar, teve três experiências seguidas de quase morte. Deitada na cama com uma infecção brotada de um câncer terminal, perdia a consciência, se afastava do corpo por um tempo, tinha visões, voltava. Da última vez que atravessou o portal, enxergou o próprio futuro:
- Não era bom.
Sobreviveu por um milagre da medicina. Quando finalmente levantou da cama, seis meses mas tarde, pegou os dois filhos pela mão e foi para o monastério informar o lama da sua decisão:
- Depois que eles crescerem, quero que você me ordene.
Teve que esperar dez anos até que as crianças se tornassem adultas e saíssem de casa. Ela tinha cinquenta anos quando rasparam o seu cabelo e lhe entregaram um muda de roupas bordô.
- Qual foi a revelação mais importante que você teve com as experiências de quase morte?
- Que praticar pensando só no próprio umbigo não te leva a nenhum lugar. E ainda cria uma vida futura que só não te conto porque não quero te assustar.
A menina ocidental de hábitos monásticos que senta na frente do palco
a australiana (ou canadense?) da minha idade que passa o dia sorrindo
a outra, com um véu de tristeza e tédio cobrindo o rosto.
Em que pensam as monjas enquanto assistem os ensinamentos na fila em frente à minha?
Será que pensam o mesmo que eu?
Será que alguma vez sentiram falta do cabelo comprido?
Ou da vida de antes?
Será que às vezes também têm preguiça de praticar?
Que cansam de repetir os mesmos mantras?
Será que se arrependem? Pelo menos um pouco, de vez em quando?
Têm saudade de casa?
No terceiro olho da imaginação, vejo-as caminhando numa floresta densa chamada dharma, o som dos mantras preenchendo o espaço vazio. Vejo-as entrando no templo à tarde para ouvir ensinamentos. Quando a época de chuvas começa, viajam com as outras em peregrinações para cavernas e cidades sagradas nas quais santos e anônimos um dia se iluminaram.
No terceiro olho da imaginação, acredito que elas são responsáveis por manter o fino equilíbrio que ainda permite que nosso planeta não entre em completo estado de
apodrecimento.
Mas é claro que não é nada disso.
Se fosse assim, todos os monges seriam Budas.
O mais provável é que se pareçam comigo.
Mas isso eu não sei dizer com certeza.
Afasto o pensamento que os torna ordinários. Gosto de manter a mágica neste mundo cada vez mais carente de aura.
Todas as vezes que passo por uma monja, abaixo um pouco a cabeça e faço uma prece. Que todo mundo tenha a chance de ser um pouco vocês.
Notinhas & recomendações
Vai dar para assistir o filme Pig at the crossing no dia 2 junho aqui neste link: o lama tibetano Dzongsar Khyentse Rinpoche também trabalha com cinema e dirigiu alguns filmes incríveis. Seu último, Pig at the crossing (“O porco na encruzilhada”), foi rejeitado por mais de 30 festivais. Em vez de fazer chororô, o maravilhoso lama aproveitou a deixa para divulgar a rejeição total e criou um festival online no dia 11 de maio no qual pessoas do mundo inteiro podiam comprar tickets e assistir O Porco na mesma hora. Depois de muitos pedidos, vai rolar uma segunda sessão online d’O Porco no dia 2 junho - dá uma olhada aqui.
O Porco na Encruzilhada é um filme super budista sobre bardo - o estado intermediário entre a morte do corpo e a encarnação num corpo novo. Aqui está a sinopse do filme numa tradução livre (e tabajara) que eu fiz a partir do site: “DOLOM, 29 anos, um apaixonado criador do YouTube e recém-nomeado professor no Butão, tem um caso de uma noite com uma mulher casada... Quando ela descobre que está grávida, Dolom trama um plano para encobrir o caso e salvar sua reputação. A caminho do encontro com Deki, Dolom sofre um acidente de moto e acorda em um mundo bizarro e caótico.
Lentamente ele começa a perceber que está de fato morto. Com a ajuda de um guia misterioso, Dolom navega neste reino intermediário e enfrenta seu passado histórico e as consequências de suas ações. À medida que o tempo desmorona ao seu redor, ele deve escolher corrigir seus erros e abandonar seu apego ao seu antigo eu ou ficar preso a vagar em um estado intermediário de sonho pela atemporalidade. “
O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, três vezes por mês. Sábado que vem é dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 8 de junho.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
não sei o que pensam os monges, mas todos me passam a impressão de terem alcançado uma paz de espírito que eu jamais conseguiria.
incrivel o conceito do filme... ja quero ver e que se dane os festivais que recusaram haha obrigada