Lisboa, 17 de abril
Abro a porta de saída da clínica lembrando do que a médica acabou de dizer. A cirurgia será um pouco maior do que o esperado, precisarei de paciência com a recuperação – um mês de cama, provavelmente.
Estou perdida, não sei por onde começar a entender este encontro com a ginecologista. Minha única reação consistente é me jogar na primeira loja
- Este daí mesmo, o laranja fosforescente.
Testo na boca e constato que a cor não tem a força que eu desejo; ela desaparece no meu tom amarelo-anêmico de pele. Tudo bem. Quero este batom, este batom alegre, vibrante, um batom que leva uma mensagem direto da boca para o universo, esta:
- Oi, mundo, estou aqui de batom laranja.
Munique, 48 horas depois
Menos de dois dias depois e já estou sentada no café do aeroporto de Munique. Faço conexão para Delhi, o voo está uma hora atrasado, o aeroporto é lindo, as pessoas comem pretzel e bebem em copos enormes.
Vinho, coca-cola, café, cerveja, tudo grande. Trouxe meu próprio sanduíche caseiro de pão integral com pepino para não ter que gastar um milhão de dólares. Também trouxe uma bolsa de papelão com outros lanches saudáveis até chegar a Delhi, lugar onde as comidas me dão alegria e caganeira em igual medida. Na bolsa de papelão, levo:
1 abacate
1 maçã
1 chocolate que veio de brinde no voo da Lufthansa
Minha boca laranja de batom.
E se eu morrer na cirurgia?
É uma cirurgia simples. Apesar de simples, sinto medo.
A verdade é que se eu morrer na cirurgia, bom… morrerei. Pronto.
Mas antes de morrer, quero ir pelo menos mais uma vez para a Índia.
24 horas antes do voo
Deito no sofá com Lilipot, minha gata preta e branca maravilhosa que gosta de tomar banho de sol no fim de tarde.
Ela é tão pequena e ainda tão criança. Como é que posso abandonar a minha gata? Por que inventei esse negócio de passar 6 semanas na Índia?
9 de Fevereiro de 2024, São Martinho das Amoreiras
Somos quatro numa reunião de trabalho para fechar o site de um cliente. Faz tempo que a gente não se vê, cada um conta suas próprias novidades. Último a falar, meu colega deixa passar que anda sentindo o corpo estranho, meio desequilibrado, pendendo para o lado esquerdo.
Na semana seguinte, faz uma ressonância e descobre que tem um tumor no cérebro.
O tumor está aí há muitos anos, diz o neurocirurgião, e eu vi a tomografia
: do tamanho de um ovo.
Meu amigo de 46 anos tem que ser operado às pressas. Vou visitá-lo no hospital uma semana depois. A comida hospitalar é muito, muito triste, então saio na hora do almoço para comprar-lhe um omelete no pão com queijo - bastante queijo - e uma coca-cola.
Em momentos assim, não pensamos em comida saudável como meu sanduíche de pepino. Pensamos em comidas
gostosas. Passamos o dia juntos.
Ele é tão jovem, tão saudável, tão gato
-Mesmo com a cabeça toda enfaixada você continua um rock star.
Tão próximo de mim.
Podia ser eu.
A doença do Rafa mexeu comigo, com meu marido e com uma outra amiga, cada um de um jeito diferente.
Meu marido é romântico: me fez pensar no que eu faria se estivesse acontecendo com você.
Minha amiga: preciso melhorar a cobertura do plano de saúde urgentemente.
Pra mim, criou um senso de urgência: quero fazer tudo que eu tenho vontade antes que seja tarde demais.
A doença do Rafa me suspendeu feito um pássaro que para no meio do voo e fica ali, pendurado no ar.
Como é que um bicho fica suspenso a meio caminho do céu?
Ninguém sabe. Ninguém sabe como um bicho desafia a lei da gravidade e quando é que a lei da gravidade vai voltar a funcionar e o pássaro vai
cair. Eu sou esse pássaro; estou no planeta Terra, neste corpo
humano
por razões incompreensíveis demais para o meu pequeno
cérebro. Não sei quanto tempo vou ficar por aqui, neste corpo-neste planeta. Por via das dúvidas, então, farei o que deve ser feito
: viver.
Viajarei para a Índia sozinha uma vez mais. A doença do Rafa me faz comprar a passagem.
Viajarei para a Índia mesmo sabendo que cada experiência passa e se dissolve e dá lugar a uma nova experiência. Mesmo sabendo que não vai resolver nada. Mas vou mesmo assim.
Um mês e meio atrás, São Martinho das Amoreiras
-Decidi que vou pra Índia.
O Lee me olha sem entender nada, e aí solta a frase da sabedoria:
-Vai mesmo. Você tem que fazer o que você tem que fazer.
19 de abril de 2024
Eu e meu marido acordamos no quarto limpíssimo de um AirBnB perto do aeroporto de Lisboa. São três e quarenta e cinco da manhã; nosso check-in abre às 4:40am.
A despedida é sempre ruim. Apesar de quatro anos vivendo assim, entre viagens, ainda não me acostumei.
Ele indo trabalhar em Londres e depois em Miami.
Eu indo para Delhi.
Tomamos um café no único quiosque aberto do aeroporto. Dentro de mim, as perguntas de sempre, as perguntas que não ouso enunciar.
E se eu nunca mais encontrar o Lee?
E se essa for a última vez que a gente vai se ver?
A doença do Rafa me trouxe a este lugar.
Lee me leva ao portão de partida e me abraça.Meu coração apertado, mas o homem que eu amo logo desaparece, substituído pelo que começa a acontecer em seguida, pedindo atenção: colocar o celular em modo avião, descobrir se o voo de conexão está atrasado, achar o passaporte, comprar remédios na farmácia do aeroporto, mandar mensagens.
O tempo é uma máquina de cortar grama sem ré. O dia-depois-do outro cura muitas aflições; só as partes mais teimosas é que persistem até que um cirurgião venha e retire mágoas e saudades inoportunas de dentro do coração.
O nome do meu cirurgião cardíaco é Índia.
Meu atelier, Janeiro de 2024
Tomei a decisão de meditar seriamente sobre 4 pensamentos muito importantes no budismo. São quatro pensamentos que têm o poder de fazer a mente virar para dentro, porque dão perspectiva ao samsara, vulgo vida.
O primeiro pensamento é o pensamento da impermanência.
O segundo é o da vida humana preciosa.
Agora entendo melhor porque as contemplações são propostas uma depois da outra. A vida e a morte estão coladas. A morte faz a gente pensar mais no que é a vida; a morte é uma espécie de pílula de lucidez.
Quanto à preciosa vida humana, acho que vai na mesma direção. À luz do tempo que nos dão ou do tempo que nos falta - sempre um mistério -
a única coisa sóbria a fazer é viver. Não sei como a minha gata se sente, mas este meu corpo humano me dá capacidade de muitas coisas, tipo abraçar meu marido ou pegar um voo para um país distante. Claro que o ensinamento budista é muito mais elaborado, e quando falamos preciosa vida humana, falamos sobre usar o tempo do corpo para realizar o potencial máximo que o corpo pode nos proporcionar.
Não sei se estou usando bem meu corpo, mas tento do meu jeito, do jeito que consigo.
Pego um voo para a Índia, escrevo este texto.
Posso meditar muito e compreender as ideias, mas sou teimosa e feita de pedra, por isso faço o que posso para trazer o ensinamento para o coração, para torná-lo meu naquele lugar da experiência que ninguém pode tirar. Foi por isso que vim.
Antes de dormir, deito na cama em uma guesthouse barata de Dharamshala e termino de ler Rakushisha, o livro lindo da Adriana Lisboa. Encontro esta passagem; sinto-me menos só:
“A viagem nos ensina algumas coisas. Que a vida é o caminho e não o ponto fixo no espaço. Que nós somos feito a passagem dos dias e dos meses e dos anos, como escreveu o poeta japonês Matsuo Basho num diário de viagem, e aquilo que possuímosm de fato, nosso único bem, é a capacidade de locomoção. É o talento para viajar”.
Recomendações
Este texto incrível que o Christhiano Aguiar escreveu sobre Augusto dos Anjos, Hilda Hist e amizade:
Notinhas
A Newsletter chegou com uns dias de atraso e furando a editoria de Retiro que eu tinha prometido para abril… Mil desculpas, mas é que a Índia sempre traz surpresas.
O Sofá da Surina é uma newsletter que chega gratuitamente à sua caixa de correio nos três primeiros sábados de cada mês. Este é o nosso terceiro sábado de abril, portanto a próxima semana é tempo de descanso do Sofá. A gente se vê no dia 4 de maio.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
"Não sei quanto tempo vou ficar por aqui, neste corpo-neste planeta. Por via das dúvidas, então, farei o que deve ser feito: viver." A vida sempre dá um chacoalhão pra nos lembrar o que deveria ser óbvio: viver.
estou lendo o Oração para Desaparecer da Socorro Acioli tambémmmm que delicia ler essa edição com alguns capítulos pra acabar esse livro magnífico!!!