#79. A mente é sempre a mesma
Na meditação ou na escrita, estamos lidando com uma única matéria-prima
Tenho uma caixa encapada com cetim azul-escuro que uso com a nobre finalidade de guardar meus fantasmas de estimação. É uma caixa pequena escondida no atelier, atrás dos livros de Vajrayana, que abro só em noites de eclipse e estritamente de acordo com o calendário lunar.
Abrir a caixa de cetim azul é um ritual que me traz invariável ansiedade. O conteúdo ali muda à minha revelia; nunca sei direito que tipo de monstro vou encontrar. A única coisa que sei é da forma: meus fantasmas costumam aparecer como um ponto de interrogação. Sou do tipo que caminha no pântano cinza das dúvidas, sabe?
Nos últimos dois anos, aliás, estas foram duas assombrações que me perseguiram:
Como tornar a escrita uma das minhas práticas espirituais?
Como posso usar a prática espiritual no processo de escrita?
As possíveis pontes entre a prática de escrita e a espiritual geram este tipo de perguntas de um milhão de dólares que - descobri - outras pessoas antes de mim já tentaram responder.
No clássico manual Writing Down the Bones, a escritora - e zen-budista - Natalie Goldberg aborda o tema enfatizando o potencial criativo que existe no processo automático de escrita - aquele no qual a gente deixa a mente regurgitar os conteúdos mentais e escreve sem editar, num continuum.
A escrita sem tirar a caneta do papel é uma prática maravilhosa porque nos permite libertar conteúdos mentais, acessá-los, reconhecê-los, aceitá-los e, no fim das contas, deixá-los passar. É uma espécie de meditação diante da folha em branco.
A meu ver, escrever assim não é exatamente o mesmo que sentar numa almofadinha de meditação porque na escrita temos um pouco mais de engajamento com cada uma das ideias que surge. Apesar disso, escrever em fluxo não deixa de ser uma técnica de concentração da mente e um exercício de deixar passar.
Fazemos contato com os conteúdos mentais. Depois deixamos passar.
Entre uma ideia e outra, o texto fica registrado. As ideias passam, nós permanecemos. A escrita é vestígio do nosso processo mental.
Do lado de cá, posso afirmar com convicção que tanto minha prática espiritual quanto meu texto sofreram mudanças radicais desde que comecei esta newsletter, há três anos. O Sofá da Surina me forçou a um exercício regular de presença diante do texto, um processo que ficou mais acentuado quando o Soƒá passou a ter periodicidade semanal.
A qualidade do texto mudou. Minha relação com a escrita, também. Escrever deixou de ser um grande evento para virar o pão de cada dia. Se um texto ficava meio ruim, paciência - amanhã começa tudo de novo e um insight inesperado pode acontecer. Se um texto ficava bom, paciência também - amanhã pode ser que você só tenha ideias murchas sem graça nenhuma.
Em ambos os casos, o texto é um vestígio da minha presença, não uma tradução linear de quem sou. Isto é muito diferente de sentar para escrever de vez em quando, ficar esperando um texto m a r a v i l h o s o sair miraculasamente do meu ser, depois achar que sou terrível porque não alcancei o resultado imaginado. Em vez de criar obsessão, a prática consistente de escrita pode gerar um distanciamento que torna o texto mais leve e cheio de possibilidades.
Na outra ponta do espectro, a prática de meditação foi espirrando para a escrivaninha na qual eu agora me sento com regularidade. Por exemplo: preguiça, sonolência, ansiedade - notei que certas resistências que eu encontrava para sentar na almofadinha de meditação eram exatamente as mesmas que me surgiam quando eu parava diante da folha em branco. À luz desta revelação, comecei a testar na escrita algumas as técnicas que eu ia aprendendo para lidar com estes problemas na meditação.
E aí, as técnicas ajudaram?
A resposta fica para as cenas dos próximos capítulos do Sofá.
Na almofada ou na escrivaninha, sentamo-nos com nossa solidão diante de uma companheira inevitável: a mente. Acho que é aqui que as duas práticas - meditar e escrever - se encontram e que possíveis traduções têm espaço para acontecer.
Olho para a caixa de cetim fechada por trás da estante de livros no atelier e resolvo que vai ficar ali até o próximo eclipse lunar. Alguns fantasmas, entretanto, continuam pairando pelo ar. Minha curiosidade sobre as intersecções entre escrita e prática espiritual seguem vivas.
Obrigada, Natalie e tantos outros, por nos trazerem seus mergulhos e descobertas. Há muitos pontos de contato entre a prática espiritual e a prática de escrita que quero experimentar ou estou experimentando. Desejo aproveitar os ensinamentos dessa linhagem de escritores e contar o que venho descobrindo a partir da minha própria experiência, também.
Nos próximos meses, esperem vários números do Sofá sobre escrita e meditação, tá?
Recomendações
Já que o assunto é escrever, estes foram alguns textos sobre o mundo dos livros & da escrita que fizeram minha cabeça na última semana:
Este texto muito necessário da Fabi:
A Re Corrêa falando sobre a construção de personagem:
Os bastidores do novo conto do Cristhiano Aguiar:
… E a Ana Rusche está com inscrições abertas para um intensivão de escrita de 1 a 15 de julho. Bora? Eu vou estar por lá, tentando avançar no manuscrito do meu próximo romance… Inscrições por aqui.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Que texto incrível <3 Também vejo a escrita como prática espiritual, uma espécie de meditação. Sempre penso que meus melhores textos me surpreendem - simplesmente sigo o fluxo e me espanto percebendo aonde ele me levou. Em outros dias, estamos só lá, marcando presença - porque nem sempre flui assim. E tudo bem!
Adorei a sua reflexão e estou animada pra acompanhar os próximos textos sobre o tema <3
tenho diversos tipos de relação com a escrita; a profissional, que me obriga a escrever todo dia um tipo de texto bastante específico e para o qual tenho um prazo bem apertado (jornalismo diário), a newsletter, em que estabeleci uma periodicidade semanal e que é muito variável, dependendo dos assuntos que encontro pelo caminho a cada edição e da facilidade/dificuldade de escrever sobre cada um deles; e a ficcional, que depende totalmente de vir uma inspiração antes de qualquer texto tomar forma. em geral, esta última acaba sendo mais rara, porque não há um prazo estabelecido e, muitas vezes, bate a procrastinação e os sucessivos adiamentos do encontro com a folha em branco, sempre na expectativa de que virá o momento perfeito, em que a ideia estará tão amadurecida que o texto vai brotar como um jorro contínuo, quase sem necessidade de edição (o que raramente acontece).