Sofá da Surina

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#24. A pequena palavra que ninguém quer por perto

sofadasurina.substack.com

#24. A pequena palavra que ninguém quer por perto

Quero falar sobre raiva

Surina Mariana
Jan 21
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#24. A pequena palavra que ninguém quer por perto

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Naquele dia, acordei com ódio

Há seis meses, num sábado de sol, reparei que um bicho peludo se mexia debaixo da cadeira da varanda

- Olha ali, baby: é o seu ódio pedindo café da manhã –

, disse o meu marido.

O bicho me olhou com imensos olhos amarelos. Coloquei ração molhada pro gato no potinho de alumínio. Naquele dia, deixei também um par de ressentimentos matinais no pires ao lado para alimentar o meu ódiozinho de estimação.


O pequeno ódio cresceu. Ficou grande, parou de caber debaixo da cadeira e no último mês me dei conta que os olhos amarelos que eram dele agora são meus. O ódio também aprendeu a falar pela minha boca.

Não convém contar o motivo do meu ódio. O ódio pode acontecer por qualquer motivo. E qualquer motivo, para quem tem ódio

é um motivo justificado para sentir ódio.

Ilustração retratando dois olhos amarelos de uma criatura indistinguível escondida por trás de uma montanha de letras
Ódio, 2023 (aquarela, guache, lápis de cor e carimbo)

Toda matéria que toma forma neste mundo, incluindo os sentimentos, está sujeita às leis da física. Ao encarnar neste planeta, cada criatura ganha de presente um punhado de propriedades únicas. O amor, por exemplo, é da natureza de se expandir ad infinitum. A tristeza, por outro lado, guarda semelhanças com a água - secreta e perigosa.

Investigando intimamente, descobri 3 propriedades do ódio:

  1. Quanto mais ódio você sente, mais ódio você vai sentir.

  2. O ódio deixa o coração duro

  3. Toda pessa com ódio fica chata e um pouco ridícula

Posso odiar alguém ou alguma coisa. Talvez a pessoa-alvo nunca saiba.

Mas eu sei, porque o ódio fica em mim. O coração do odiador é uma sala fechada, muito pequena, onde as plantas murcham e a turmalina está saturada de bad vibes.

Mesmo assim, o ódio continua. O ódio não se esgota porque é uma sensação que cresce e cresce e cresce encontrando mais motivos para crescer, porque vamos combinar. O mundo não é um lugar perfeito:

-Você anda meio cinza nos últimos meses

, notou a garçonete do café que eu frequento.

Este samsara é uma terra mutcholoca cheia de contrastes. Na paisagem de um coração devastado, o ódio crescerá.

Sobre a coisa do ódio ser ridículo: pense na imagem do patriota agarrado ao caminhão com a camisa da seleção.

Sobre a coisa de ser chato: ninguém aguenta ficar muito tempo perto de alguém reclamando com ódio no coração.


Como se livrar do ódio

É simples.

Basta tirar a mochila, largar o ódio no chão e seguir a vida sem ele.

A parte difícil é esta

: se você largar o ódio, aquela pessoa que sente ódio dentro de você vai desaparecer também. Isso significa que aquela voz cheia de motivos para o ódio e que está numa missão para se vingar - sim, aquela pessoa deixará de ser.

Agora que sinto ódio, entendo

: que a minha identidade não vem só das coisas que eu amo, como eu pensava. Não vem dos meus filmes preferidos, dos livros que mudaram a minha vida, hábitos, interesses compartilhados. Uma parte da nossa identidade vem das coisas que nós odiamos.

Odiar é criar

um inimigo

e o inimigo me diz

por contraste e semelhança

quem eu sou.

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Penso nestas coisas agora que estou com ódio.

Penso, principalmente, nas pessoas que não consegui perdoar.

Às vezes minha falta de perdão é dormente. Mas se vejo uma foto antiga, volta. Quando penso em certas pessoas, quero que elas vão para o raio que o parta.

Penso no volume que o ódio ocupa dentro do meu corpo.

Neste momento, um montão.

Embora o ódio pareça ser um simples passageiro que uma hora ou outra vai ter que descer, a verdade é que ele tem a tendência de folgar.

O ódio é um passageiro espaçoso com umas pernas muito compridas

e um monte de malas

que senta na cadeira do avião e esmaga as pessoas legais do seu lado que você podia conhecer durante a viagem.


Por que a gente sente ódio

Um dia conheci uma mulher iluminada. Ela era inglesa, tinha 39 anos, cabelo liso e unhas vermelhas.

Era escritora, mas deixou de escrever depois que se iluminou.

Passei três meses com ela no sul da Espanha. Ela ainda não era famosa, então podíamos conversar sem um milhão de pessoas competindo por atenção.

Numa sessão de ensinamentos, perguntaram-lhe o que era ódio.

Ela respondeu que ódio é o que acontece quando as expectativas com o amor falham. O ódio vem quando o amor que te prometeram não foi entregue, parou, ou tiraram de você.

Não sei se a resposta dela está certa, mas penso no meu ódio e a resposta funciona

pra mim.


Como eu faço o ódio dormir

ando de bicicleta (nenhum ódio sobrevive a 15 minutos de subida)

escrevo no diário

olho meu gato dormindo sofá


Este tipo de sentimento cresce quando você resiste, explicou meu professor.

Nestes tempos de ódio, tento lembrar de tudo o que me ensinaram.

Trungpa Rinpoche, um lama tibetano que eu adoro, diz que é tudo bem sentir tudo - até o ódio. Mas você tem que saber usar.

Por baixo da casca, o ódio é uma energia.

Se você olhar com cuidado e conseguir se afastar da história enquanto a crise de raiva está acontecendo (o que é a última coisa que a gente quer fazer nestas horas)

o ódio se liberta das suas histórias

e pode finalmente se soltar no céu.

Escrevo aqui hoje de manhã

café com leite

o fogo na lareira

a escrivaninha cheia

olho para a tela

do outro lado, letrinhas times new roman

o ódio me olha

de volta

: olhos vermelhos

corpo peludo

depois vira as costas

porta aberta

corpo no espaço

o gato no sofá

meu coração, um balão.


Recomendações

  • A melhor notícia de hoje é que suprimir não é o único caminho: existem muitos meios habilidosos para lidarmos com emoções aflitivas. Aqui neste texto (em inglês) você encontra a técnica linda e simples do Thich Nhat Hanh para atravessar a raiva respirando. E neste vídeo (legendas em português) ele explica como fazer isto.

  • Um videozinho lindo de menos de um minuto da Pema Chödron falando sobre a técnica de abandonar a história que sustenta a raiva - ou qualquer outra emoção aflitiva.

  • Respire a raiva para fora com este vídeo de 43 segundos da Tenzin Palmo (legendas em português).


Uma notinha

O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, 3 vezes por mês. Sábado que vem é o último de janeiro, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 4 de fevereiro.

Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,

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8 Comments
Denise Gals
Writes Aprendiz de Escritora
Jan 26Liked by Surina Mariana

Ah, ah, eu lendo sobre ódio e sorrindo por aqui. Sua escrita é envolvente e não consigo visualizar uma pessoa tão iluminada como você envolta em ódio.

beijo, menina

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1 reply by Surina Mariana
Feganismo
Writes Feganismo
Jan 22Liked by Surina Mariana

ahhhhh como eu amo te ler <3

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2 replies by Surina Mariana and others
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