#29. A preciosa vida humana
Pensar sobre a morte
Toda vez que recebo a notícia de alguém que morreu, sinto vontade de caminhar. Não entendo a lógica deste desejo, só sei que no último ano ando caminhando muito.
Hoje às três da tarde saí de casa. Quinze minutos antes eu terminava um trabalho no atelier, que fica no jardim. Aproveitando o intervalo entre uma camada e outra de aquarela, chequei e-mails no celular. Uma dessas coincidências misteriosas: a ilustração que secava na escrivaninha era de uma caveira vestindo uma coroa de flores. Ao ler a mensagem, fui atacada por uma vontade incontrolável de ir embora, então deixei a ilustração por terminar e abri a porta.
Subi até a casa pelo gramado e chamei meu marido.
Era um dia ensolarado de inverno e ele consertava os nossos painéis solares. Que cara é essa?, gritou do telhado. Ele não tinha nem cinquenta anos, respondi. Meu marido desceu e me abraçou sem dizer nada porque é um gentleman britânico elegantíssimo que sabe como se comportar nas horas difíceis:
- Agora vou sair
, e ele respondeu que tudo bem.
De costas pra casa, ouvi-o subindo a escada. O barulho da serra nos painéis começou de novo.
Com um grau centígrado no termômetro, hoje foi um dos dias mais frios do ano. De gorro, cachecol e botas deixei minha casa no alto do morro e caminhei pela estrada de chão. Caminhei por entre as árvores cascudas das corticeiras sobreviventes que habitam solitárias a floresta despovoada deste deserto alentejano rochoso e apocalíptico.
Enquanto caminhava não passou ninguém. Carro, pessoa, nada. De vivo, só o som dos sininhos e dos berros mal humorados de ovelhas invisíveis na imensidão.
Havia também o sol e o vento do norte, polar.
Indo do morro em direção ao vale, passei pelo cemitério de muros caiados que é meu vizinho mais próximo. Continuei. Não pensei em nada enquanto caminhava. Em mim e em volta, só um silêncio que se anunciava mudo, sem tristeza nem medo. A morte é um mistério. O silêncio me percorria sem deixar meu corpo frio nem mudar a pulsação, uma espécie de verdade relembrada que me dava prazer. Que tipo de prazer? , e a resposta veio
: o prazer de estar na beira da própria vida.
Até hoje, só a morte e as práticas espirituais intensas conseguiram me trazer para este lugar essencial. A morte é um filtro para os meus olhos. A morte é um lugar onde nada é artificial e não há maquiagem possível. A morte é principalmente um lugar sem emojis - um tipo de lâmina
: a morte hoje chegou até mim como um presente.
Não que ela me deixe feliz, porque feliz não é a palavra para morte. É como se ela me deixasse mais verdadeira.
Toda vez que alguém morre, me sinto um pouco deixada para trás no reino dos vivos. Quando David Bowie e Leonard Cohen partiram no mesmo 2016, o reino dos vivos me pareceu pálido.
Se me enterrarem no cemitério de São Martinho das Amoreiras, viverei infinitamente mais tempo nele do que fora. Este pensamento me atravessou, e também um outro. O de que tenho um passaporte para o reino dos vivos com data de validade desconhecida. Em algum momento não estarei mais deste lado – ou pelo menos não com este corpo. O que me separa daqueles que morrem é só o tempo, mas não sei dizer exatamente quanto.
A Suleika Jaouad, que escreveu sobre sua experiência como paciente de leucemia aos 23 anos, escolheu uma citação da Susan Sontag para a epígrafe do seu livro autobiográfico Between two kingdoms. Sidhartha Mukherjee escolheu a mesma epígrafe para seu livro de não-ficção sobre câncer, o maravilhoso The emperor of all maladies. A epígrafe diz assim:
“A doença é o lado noturno da vida, uma cidadania mais onerosa. Todo aquele que nasce tem dupla cidadania - uma no reino dos sãos, outra no reino dos doentes. Embora a gente prefira usar apenas o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde cada um de nós é obrigado, pelo menos por um período, a identificar-se como cidadão daquele outro lugar.”*
O que a Susan aponta é a falta de fronteiras definitivas entre o reino dos doentes e o reino dos ‘saudáveis’. No budismo também se fala de continuidades. A morte e a vida são um continuum – estados transitórios, ou bardos. Existir é habitar uma linha onde vida, o momento da morte, o entre-vida-e-morte, depois a nova vida – onde tudo isto acontece.
Neste últimos tempos tantas pessoas em volta de mim ficaram doentes ou morreram ou estão atravessando doenças terminais que é quase como se eu mesma estivesse caminhando por um território de trânsito. Todas têm entre 35 e 45 anos. A doença delas oferece ao meu corpo uma experiência profética: meus amigos são emissários não apenas da própria mortalidade, mas também da minha. Aqueles que estão passando pelo reino dos doentes ou contemplando o reino dos mortos mandam notícias daquelas paisagens que um dia também visitarei. Lembro que tenho aquele outro passaporte, também.
Sei que estar doente e atravessar a experiência da partida - a própria, ou de alguém muito próximo - é muito diferente de estar neste meu lugar de observadora.
Mas deste lugar onde estou, agradeço aos emissários.
Tudo hoje é esquisito. A morte faz a vida parecer mais real. A morte faz a vida parecer um sonho. Meu corpo é etéreo demais para aceitar que um amigo de 45 anos de repente tenha ido embora. Então eu caminho, um passo depois do outro. Uma senhora alemã ou suíça ou holandesa me pega desprevenida assim que me aproximo da vila, vai falando sobre capinar e eu digo que não tenho tempo hoje, que me deixe em paz e vou seguindo, os europeus são diretos e grossos então hoje eu também posso ser, não me importo, não tenho tempo a perder com autojulgamentos ou tentativas de agradar, só quero caminhar sozinha, tá cheio de gente na rua então é hora de pegar o caminho de casa. Faço a volta e vou subindo o morro, aquela sensação de silêncio. Ela está intacta, ela está mais forte, ela não me atrapalha. Não quero que a sensação suma, não quero que saia de mim, essa sensação é o melhor que me aconteceu hoje, a morte é uma surpresa, a sensação sem nome me faz lembrar de algo que é mais eu do que eu mesma.
Quando chego em casa, meu marido já desceu do telhado e agora está sentado na frente do fogão a lenha. Esfriou mais, ele não faz perguntas difíceis, (um gentleman), mesmo que fizesse eu não saberia responder, é só um silêncio e mais nada, eu diria, mas como já disse ele não me entope de questões. Em vez disso levanta, vai até a bancada da cozinha, ouço uns barulhos estranhos de louça batendo, depois se vira pra mim:
- Fiz uma xícara de chá de hortelã pra você, baby
Mensageiros
Já recomendei, mas vou fazer de novo: o livro da Suleika Jaouad, lançado no Brasil pela Sextante com o título Memórias de um vida interrompida (2022, 336 páginas) e tradução de Mariana Mesquita.
De uma ternura despretensiosa e profunda, Histórias lindas de morrer (Sextante, 2020, 224 páginas) traz várias pequenas histórias de pacientes tratados pela médica paliativista Ana Cláudia Quintana Arantes.
“Uma biografia do câncer” foi o subtítulo escolhido pelo Siddhartha Mukherjee para o seu maravilhoso livro The emperor of all maladies, lançado no Brasil pela Companhia das Letras com o título O emperador de todos os males (2012, 648 páginas) e tradução de Berilo Vargas. Deve ser a fase, mas o livro me surgiu como uma linda reflexão sobre as fronteiras que separam vida e morte, doença e saúde.
Para ouvir: este podcast aqui. A edição sobre morte e luto do Incêndio na Escrivaninha é incrível. Foi música para os meus ouvidos escutar a conversa dos escritores Thiago Ambrósio Lage, Vanessa Guedes e Ana Rusche com a médica paliativista Laura Muller.
*A citação da Susan Sontag é uma tradução livre do original em inglês: “Illness is the night-side of life, a more onerous citinzeship. Everyone who is born holds a dual citizenship, in the kigndom of the well and in the kingdom of the sick. Although we all prefer to use only the good passport, sooner or later each one of us is obliged, at least for a spell, to identify ourselves as citizens of that other place.”
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Um texto pra guardar. Uma carta escrita com letras douradas. A finitude e suas vicissitudes... Indico um livro chamado viver o seu morrer, do Stanley keleman. Acho que vc vai gostar. Amei as ilustrações 💗 um beijo
Caramba, tô sem palavras. Eu te abraço, amiga.