Não sei se você sabe, mas além de escritora e ilustradora eu também faço freela de garçonete um par de dias por semana no restaurante da minha vila.
É um restaurante especial, o único grande da nossa preciosa São Martinho das Amoreiras. Posso dizer que o dono é um velho amigo: foi por causa dele que comecei e continuo trabalhando aqui, embora só nos vejamos de vez em quando e troquemos não mais de duas palavras por vez.
O dono do restaurante é o melhor tipo de amigo, aquele tipo que fica na nossa vida mesmo quando não temos nada para dizer um ao outro.
Nos últimos seis meses me deram uma nova função: além de garçonete, certos dias também trabalho no balcão.
Aqui no restaurante cada canto tem seu ritmo. A cozinha, por exemplo, é um lugar espaçoso, repleto de bancadas de inox e de cozinheiros que vão para cima e para baixo preparando as comidas e as pizzas.
O balcão, por outro lado, é território de uma pessoa só. Por trás da bancada grossa de madeira maciça reluzente, preparo o expresso na máquina profissional de café e sirvo nossos bolos & sorvetes. As sobremesas, aliás, são o forte do restaurante. Aqui temos produtos para todos os gostos, como
: cheesecake e tiramisú contendo leite ovo açúcar e tudo que engorda
bolo de chocolate sem glúten
cappuccino descafeinado
expressinho clássico
café com uma bola de sorvete dentro
a torta gostosa que nem no forno vai - é sem açúcar sem glúten sem nada, caso você esteja numa dieta de comidas cruas veganas.
Acredite se puder: há muita gente raw vegan neste mundo.
O serviço no balcão segue uma sequência lógica. Primeiro os garçons atendem as mesas, escrevem o pedido e o colocam no sistema. O computador transforma a ordem magicamente em pedacinhos de papel: tudo que é comida vira ticket pulando na máquina da cozinha. Tudo que é bebida ou sobremesa vira ticket na máquina do balcão. Assim:
MESA 12
2 pessoas
1 cappuccino
- leite de aveia
1 água com gás grande
- 3 copos
- limão
- gelo
Gosto quando minha chefe me avisa que vou trabalhar no balcão. É um lugar calmo de onde posso observar os clientes entrando e saindo e as comidas caminhando nas mãos dos garçons em bandejas esculturais.
Tudo é paz.
Exceto no verão.
O que é que acontece com as pessoas no verão?
Será que fervemos por dentro?
Os clientes não param de chegar. Pais com os filhos em férias escolares, turistas a caminho das praias, moradores entediados.
Sai um chá gelado. Corre pra cortar rodelas de limão. Sai um café gelado, é pra já, escuta, querida, você não viu que era decaf? A garçonete acena o ticket que eu fiz errado. Desculpa, vou fazer de novo. Vixe, acabou o gelo. Sai um leite dourado com mais cúrcuma e menos canela.
Sai um sorvete de flocos e outro de chocolate. Acabou a calda. Sai um expresso simples. Sai dois cariocas e um pingado.
- E esse latte, por que voltou?
- O cliente disse que não tem espuma.
O balcão me fez entender algo: que a lista de preferências que nós, seres humanos, carregamos no bolso é infinita. Intermináveis, também, são nossos comentários por fazer. Por que vocês só têm leite de aveia e não de soja de arroz de amêndoa por que vocês não têm leite orgânico? por que não tentam leite de castanha de caju? por que o leite de aveia tem açúcar? O leite
de aveia é glúten-free mesmo? Você pode olhar? Tá dizendo na caixinha? Certeza que é glúten-free?
A vida, claro, a inocente criatura chamada vida é insuficiente para tudo que, nós, seres humanos, gostaríamos de ter. Talvez você devesse fazer que nem aquele lugar no Algarve, já ouviu falar? Lá eles produzem os próprios leites veganos com uma mistura de castanha natural.
Aham.
Escuto a máquina de tickets apitando sem parar atrás de mim enquanto uma cliente descreve lenta e m i n u c i o s a m e n t e o ponto ideal que ela acha que a cobertura do nosso (maravilhoso) bolo de cenoura deveria ter de acordo com sua experiência de comer bolos de cenoura no sul da Alemanha.
Só consigo me desvencilhar tarde demais: a crescente fita de pedidos agora se espalha por cima da máquina de café, um ticket grudado no outro.
No balcão é assim. Às vezes todas as mesas pedem de uma vez, uma distração pequenininha aparece e bum. Você acaba sozinha com uma pilha de tickets acumulados.
Coca cola com gelo coca diet com limão coca orgânica limonada cerveja sem álcool shweppes, sorvete sem calda sorvete com calda, tiramisú sorvete de chocolate amor, nosso gato lambeu o sapo, você pode levar no vet? Você já checou a conta no veterinário? Arquivo do livro novo para a gráfica tem que ir hoje sem falta, nota mental: checar se é o arquivo certo, email mensagem email email email email prazo para candidatura de um projeto novo de livro,
tickets, coca cola, pintura nova pra entregar, louça pra lavar, mousse de chocolate, cheesecake, os tickets não param, os pedidos da vida continuam saindo da
máquina.
Onze da noite, restaurante prestes a fechar. Seco os últimos copos e desligo a geladeira dos bolos. Amasso, depois jogo no lixo os tickets do dia que terminou, os meninos limpam o chão da cozinha, cadeiras sobre as mesas, o último cliente solitário pula do fundo do salão:
- Amanhã vocês estão abertos?
-Todos os dias, meu senhor, inclusive domingos e feriados. O nosso restaurante não fecha
jamais.
1 notinha & 1 novidade
-Notinha: esse é o terceiro texto das Confissões de uma garçonete que escrevo. Aqui está o Confissões de uma garçonete, parte 1 e aqui o Confissões de uma garçonete, parte 2.
-Alegria alegria: no dia 29 de julho sai a pré-venda do meu livro novo! O 108 é meu segundo livro e primeiro romance, que está sendo publicado de forma independente pelo selo Longe, de Brasília. A próxima edição do Sofá é especial sobre o livro, com um pouco dos bastidores de como foi escrevê-lo. Coloquem na agenda e na semana que vem eu mando aqui o link da pré-venda pra vocês - são três semanas nas quais você pode comprar o livro com desconto, sem frete e com vários brindes legais. Vamos?
-Por enquanto, aqui vai a página do livro no meu site. Entra lá e baixa uma amostra linda do livro de presente <3
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
deve ser enlouquecedor ver um montão de tickets pulando na maquininha. se um dia pintar um tiramisù com expresso duplo, pode ser que seja o meu pedido! 😊
Aiii Mariii, que lindeza. Que edição mais cheia de surpresas. Pra variar o Substack não manda mais e mail de teus textos. Achei o aqui, porque vim de propósito procurá-lo. E que linda surpresa. O lançamento do teu livro. Já tá na minha lista Dia 29 tô entrando no site ou onde quer que ele vá estar para garantir meu exemplar. E daí já baixei o presente que deixaste lá para nós. Que delícia.
Agora deixa eu te falar, lendo o texto do Sofá, fiquei pensando num livro que li uns tempos atrás da Elif Shafak uma escritora turco/britanica, chamado As 40 regras do amor. O que me lembrou o livro foi especialmente o que você falou do teu chefe. Me lembrou um trecho do livro que se passa num bar/ restaurante onde o personagem do livro dentro do livro está trabalhando por uns tempos. Ela mistura também duas linhas de narrativa no livro. Uma atual sobre uma protagonista que está revisando um livro sobre uma história que se passa no tempo de Rumi o poeta sufi. E aí vou ver teu livro e minha surpresa ao ver como você o descreve. Já queria lê-lo antes. Agora cada vez mais. Amei o título também. Mas posso esperar. Obrigada querida.