#89. Confissões de uma garçonete, 4
Pergunte-me qualquer coisa, mesmo que eu não tenha ideia do que responder
Trabalhar num restaurante pode ser uma atividade edificante ou destrutiva, depende de como você está no dia.
Tenho 44 anos vividos em seis países e nove cidades diferentes, fiz faculdade mestrado quase terminei um doutorado, escrevi dois livros, fui para a Índia seis vezes, morei num ashram.
Posso dizer com confiança que poucas coisas neste mundo me ensinaram mais do que ser garçonete.
Se alguém me perguntasse qual o melhor jeito de aprender sobre a vida, eu diria: 1) leia livros de literatura; 2) vá trabalhar num restaurante.
Ser garçonete significa estar a serviço. Estar a serviço num restaurante é colocar-se numa posição de radical receptividade. O cliente sempre tem razão, não é mesmo? Ele pode pedir ou perguntar ou que quiser.
Não significa que você sempre vai ter uma solução. Significa, entretanto, que a lojinha está aberta para receber os pedidos. E que, de um jeito ou de outro, você vai ter que se virar com uma resposta.
Tudo começa no vestiário. Camiseta, avental (meu uniforme é preto) e a partir de então todo mundo sabe: estou aqui, façam os seus pedidos.
Meio-dia: o restaurante abre. Chegam famílias com cachorros, casais de namorados apaixonados e também casais em crises terríveis com amargor-tristeza-crueldade infinitos. Chegam mães solteiras com seus filhos, o padre acompanhado de três senhoras para tomar chá com bolo, e uma vez chegou uma mulher com um balde. Foi no meio da tarde, eu estava no caixa fechando uma mesa quando a vi andando na minha direção, trouxe aqui pra vocês, ó.
Parou. Tinha óculos de aro grosso, uns setenta anos, cabelos pintados de cobre. Sorriu.
De dentro do balde, a tartaruga verde não sorria. Olhou assustada, as patinhas em desespero enquanto o corpo se debatia para escapar daquele cubículo estranho.
Pra vocês colocarem na fonte do jardim. A tartaruga de estimação da Maria tinha crescido demais e já não cabia no aquário. Gosto tanto dela, vai me fazer falta em casa.
Não dava para nossa nova amiga se mudar para a fonte de água do jardim do restaurante, pequena demais para tartarugas. Enquanto pensávamos em que destino dar ao bicho, enchemos a banheira do toilete de serviço e a deixamos ali. Naquela tarde o restaurante estava cheio e com muito custo nos revezamos para ter certeza que a tartaruga estava bem dentro da banheira, para que não se afogasse (tartaruga se afoga?), para que nenhum acidente acontecesse.
No fim do dia, pegamos o balde e levamos a tartaruga para o ashram que fica perto do restaurante. Arranjamos tudo. Ali, de uma só vez, soltamos a tartaruga no lago – um lago transparente, cristalino, repleto de carpas coloridas
alaranjadas vermelhas amarelas brancas
e a tartaruga nascida e criada em aquário nadou rápido, confiante, parece que sempre tinha estado ali entre os pontos coloridos que na verdade eram peixes
e sem que a gente precisasse dizer nada, todos nós presentes sabíamos o que aquilo significava
: a tartaruga estava feliz. Ela havia se tornado o que sempre tinha sido
todo bicho vem para esse mundo
livre.
Recebemos tartarugas em baldes. Além dos bichos, recebemos também perguntas, e elas são muitas. Por que vocês servem carne aqui?
O que você fazia antes de ser garçonete?
Mas vocês acham que é certo servir carne?
E a carne, é local?
Tem certeza que o leite de aveia não tem glúten?
Você viu na caixinha?
Viu mesmo?
Pode ver de novo?
Por que você me trouxe esse pão horrível?
Quando vocês fecham?
Por que vocês abriram?
Você tem namorado?
Quer casar comigo?
Tem certeza que não quer?
Por que você não quer casar comigo?
Todo mundo é assim, que nem você, nesse restaurante?
Você pode me explicar por que é que uma pessoa que quase terminou um doutorado está trabalhando de garçonete?
Você pode mandar passar esse bife?
Duvido que esse cheesecake seja feito por vocês. Tem certeza?
Por que decidiram abrir um restaurante desses no meio de São Martinho?
As perguntas – isto eu aprendi no restaurante –nem sempre são perguntas. Às vezes as perguntas são um jeito de te mandar ir e voltar da cozinha um milhão de vezes. Alguém está brincando de ter poder sobre o seu corpo.
Às vezes as perguntas também são um jeito do cliente aliviar o ódio guardado no coração. E nada, nada mais seguro para aliviar o ódio do que uma garçonete que provavelmente - provavelmente, eu digo - não responderá.
Entendi, no restaurante, que não há limites às perguntas. Que você pode dizer não, não podemos tirar o pimentão do molho agridoce, e mesmo assim o cliente, se quiser, vai perguntar novamente. E caminhará pessoalmente à cozinha pedindo que o pimentão seja cirurgicamente removido só para si e reclamará quando vier o prato repleto de pimentões que só na imaginação dele não estariam lá.
Entendi, no restaurante, que as pessoas podem te perguntar qualquer coisa. Elas certamente perguntarão. Juro: elas perguntam, são respondidas e depois
continuam perguntando. O restaurante me ensinou que as perguntas continuarão, e que elas são a louça suja deste
mundo. Entendi que se minha ideia de liberdade for viver um dia sem perguntas, ou só com perguntas boas, então passarei a vida aprisionada. No restaurante eu entendi que as perguntas virão, e sobretudo, sobretudo entendi que a liberdade tem menos a ver com elas do quem com aquilo que posso responder:
- Não. Com isso aí eu não vou te ajudar. Há mais alguma coisa que eu possa fazer hoje por você?
Surina Responde
Tem alguma coisa que você quer me perguntar?
Estou abrindo a caixinha para um experimento. Nos próximos meses vou escrever algumas edições do Sofá a partir de perguntas dos leitores. Bora?
Faça a sua pergunta aqui embaixo – o formulário te dá o direito ao anonimato, se preferir. Vem participar deste experimento comigo, vem :)
Os lançamentos do 108 começam no próximo sábado!
Bora?
CURITIBA - 14 de setembro (sábado), às 10.30 na Livraria Arte e Letra. Bate-papo com a tradutora e jornalista Mariana Sanchez.
FLORIANÓPOLIS - 18 de setembro (quarta), às 19h na Livraria Latinas. Bate-papo com Aline Assumpção, jornalista e designer editorial.
BRASÍLIA - 28 de setembro (sábado), às 17h na Circulares Livros. Bate-papo com Julliany Mucury, doutora em letras pela UnB.
SÃO PAULO - 03 de outubro (quinta), às 18hs na Livraria Na Nuvem.
Enquanto isso, você pode continuar comprando os livros por aqui, ó:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Há tempos um texto não conversava tanto comigo ❤️ Fui levada de volta para os anos sendo garçonete, sempre à disposição, aberta para receber perguntas e realizar desejo — ao servir conheci o meu melhor, vi o meu pior é fui profundamente transformada, virei mais gente. Restaurante é mesmo uma escola. Obrigada por me fazer lembra dessa parte da minha história de mulher estrangeira. Um abraço!
Meninaaaaa que delícia esse texto, é em muitos momentos ri alto, não por me identificar, não por achar engraçado, não por rir da sua situação, se não… por refletir as diferenças culturais, vivo em Paris, e aqui as garçonetes sim, em geral são mais agradáveis que os homens, agora te escrevendo, já comecei a matutar… será talvez também um problema de gênero? Mas isso é pauta para outra conversa!
Enfim corrigindo: os garçons em geral aqui em Paris tem uma maneira peculiar de atender, de responder e de até não responder, para começar eu estou analisando os locais não turísticos ( porque nesses noto um pouco do que você experiência ) e nos restaurantes, bares e cafés mais locais, noto uma relação mais igualitária, mas ao mesmo tempo uma relação agressivo-passiva sabe como? Risos…
E sempre me chamou atenção o fato de em geral não ter sorrisos, afinal eles não são nossos amigos, eles vem quando pode, afinal são várias mesas a atender, eles sempre vão trazer a garrafa de água então se pedir, espere por ser ignorado, não venha pedir excessões retira isso ou aquilo, eles vão revirar os olhos e vão dizer “Ce n’est pas possible, vous souhaitez demander autre chose?” Não é possível, quer pedir outra coisa… e foi assim nesse contraste de sua experiência com a minha em outra cultura… que eu ria, e ria muito Ahhh eles fazem uma pausa café ( para fumar um cigarro) e você não me venha fazer sinal, chamar por eles, pois certamente ele não vira!!!
Talvez você aí do outro lado esteja pensando mas que falta de educação e eu te digo que Não.. não é falta de educação, é apenas um outro ser humano fazendo o trabalho dele, sem nenhuma subserviência, sem a obrigação de te fazer feliz, e muito menos servir como se você fosse superior a ele 😄🤪