Você tem escolha sobre como agir mas não sobre os resultados. Não se considere o autor dos resultados da ação; da mesma forma, não se apegue à inação. (Bhagavad Gita, II:47)
Oi, tudo bem?
Uns tempos atrás recebi o texto de uma revista budista para ilustrar. Éramos uma equipe de artistas trabalhando naquele número e a editora escolheu para mim uma fábula zen.
Na história, um adolescente sai da cama às quatro da madrugada e vai acordar o pai:
“-Pai, eu vou ser monge!
O pai, meio sonolento, responde:
- Não. Você não pode ser monge porque não é uma boa lata de lixo”.
O texto era simples e bonito. Como tudo que é zen, parecia uma charada. Por que uma lata de lixo?
O prazo para entregar a ilustração foi passando e eu não sabia o que desenhar. Um dia, então, entendi o que o monge queria dizer.
Foi às 4 da tarde. De avental e uniforme, comia minha salada na última mesa do restaurante depois do turno do almoço. De costas para mim, o gerente fazia notas sobre reposição de estoque quando soltei a frase iluminada:
- Acho que o Buda poderia ser uma garçonete.
Ele sabia do meu dilema ilustrativo e não precisou de explicações. O gerente que trabalha em restaurantes há muito tempo sabia precisamente o que eu queria dizer:
- É verdade. Se o monge do seu texto é uma lixeira, então ele tem vocação pra garçonete.
De vez em quando faço freela de garçonete no restaurante da vila. É um restaurante muito especial e os colegas de trabalho são meus amigos.
Estar de pé diante de uma mesa parece uma atividade ordinária, mas não é. Na frente de uma mesa de restaurante tudo pode
acontecer.
Comecei minha prática espiritual há uma década, mas foi num meio-dia de restaurante lotado que o conceito de karma yoga se revelou realmente.
Naquele dia um homem grisalho sentou na mesa do fundo, perto do vaso de jibóia. Não disse de onde era mas fazia questão que todos os pratos viessem na ordem certa. Pediu de uma vez:
um chá
um bolo
uma entrada
um prato principal
uma salada
, e me explicou:
“primeiro, o chá. Quando o chá estiver morno, traga o bolo. Quando eu estiver terminando o bolo, peça na cozinha para prepararem a entrada. Assim que a entrada estiver no fim, antes de acabar, pode mandar vir o prato principal”.
No meio das outras mesas, agora eu precisava interpretar se tinha chegado a hora de pedir o próximo item. Discrição era importante; olhar demais podia deixa-lo desconfortável. Além disso, torcer. Tomara que os cozinheiros preparem os pratos no timing deste senhor.
Tentei agrada-lo. E por alguma razão inexplicável
: o prato com a entrada estava quebrado
acabou a canela
o bolo que ele escolheu era o último e veio mole. O cliente pediu para trocar
trazer outro
esquentar o chá
colocar mais mel
devolveu o prato principal
(ainda não era hora)
tudo pra ele dava
: errado
Entre nervosa e complicada, aceitei a única solução possível: não era culpa minha. Naquele dia, naquele restaurante, o homem de cabelo grisalho tinha por destino encontrar um desastre.
Eu era só uma peça dentro de algo maior.
Concentrei forças no ensinamento do Bhagavad Gita: fiz o melhor que podia tentando me desapegar dos resultados. Quando tomei esta decisão, tudo continuou dando
errado. Ele não disse nada quando foi embora, mas tenho impressão que o homem teve uma experiência terrível.
Quanto a mim, passei a sofrer menos desde aquele sábado.
E aí tem essa outra história.
A porta que dá para a área de lavar a louça é basculante e tem uma janelinha de vidro redonda que lembra escotilha de navio. É lá que a gente leva as louças sujas quando tira uma mesa.
Também era almoço, e também o restaurante estava lotado. Esqueci de olhar pela janela e bati a porta com toda a força na cara de um cliente que acabava de sair do banheiro.
Pedi desculpas. Ele parecia desconcertado e voltou para a mesa sem responder, mas a saga não tinha acabado. No fim do turno, bati a porta de novo na cara do mesmo cliente, que tinha saído do banheiro pela segunda vez.
Trabalho neste restaurante desde 2020 e nunca bati a porta na cara de ninguém, nem antes nem depois. Só aconteceu naquele dia, e só com aquele homem.
Quando ele quis a conta, fiquei com medo de levar. Pedi que entregassem e espiei de longe. Na maior mesa do restaurante, ele estava sentado de olhos fechados, uma aura por trás do rosto.
Pensei no enredo para outra história tipicamente zen
: homem passa a vida inteira meditando, um dia leva duas portadas na cara e se ilumina.
Então é assim.
Hoje à noite foi dia dos namorados aqui e servi a mesa de um casal idoso que comeu as comidas menos saudáveis do cardápio. Ao terminar, a senhora britânica foi olhar os bolos no balcão. Pediu de cenoura, o mais doce de todos
-Duas fatias só pra mim
, depois se sentou. O marido tinha senso de humor. Ela usava vestido preto e um par de óculos de aro grosso. Ambos tinham a calma de quem viveu de verdade e envelheceu sem arrependimentos. Aposto que se quisesse ela teria pedido o bolo inteiro.
Será que tinha sido punk quando era nova?
Não sei. Provavelmente nunca saberei.
Minha função é deixar que eles comam o frango agridoce e o bolo de cenoura sem se preocupar. Sem ter que conversar comigo, ser invisível é a minha função.
Minha função, mais do que servir as mesas, é ser um escoadouro. Para os pedidos e para as reclamações, e todas as vezes que saio do restaurante sinto-me mais feliz do que quando entrei. Limpo as mesas, coloco as cadeiras pra cima
bebo um copo d’água. À noite, assim que chego em casa, deito no sofá turquesa em silêncio. As conversas e o cheiro de comida vão saindo
de mim. O Buda é uma lixeira. Deito no chão, coloco o pé pra cima. O gato que come no pote de metal não precisa de cardápio - o tempo trocando as minhas roupas.
Notinhas
Tenho imenso respeito por um santo indiano que tive a felicidade de conhecer em 2015, um pouco antes que deixasse o corpo. O trecho do Bhagavad Gita no topo desta Newsletter é uma tradução livre a partir da tradução que Swami Daynanda Saraswathi fez do original em sânscrito. O trecho original retirado de The teachings of the Bhagavad Gita (p. 52) é este: You have choice over your action but not over the results at any time. Do not (take yourself to) be the author of the results of action; neither be attached to inaction”.
Se você quer saber mais sobre o Bhagavad Gita a partir do olhar de Dayananda, recomendo este pdf (em inglês).
No Brasil, Glória Arieira é uma estudante direta do Swami Dayananda e há algumas décadas vem fazendo um trabalho incrível de tradução das escrituras a partir do sânscrito e de disseminação dos ensinamentos do Vedanta. Dê uma olhadinha aqui para conhecer melhor esta professora e o que ela tem criado por meio do Vidya Mandir.
Conheça a maravilhosa revista Bodisatva, para a qual fiz as ilustrações que você vê aqui.
O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, 3 vezes por mês. Sábado que vem é o último de fevereiro, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 4 de março.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Que aconchego ler esse texto no começo de um carnaval que promete ser de muito trabalho e pouca festa por aqui. Uma vez ouvi dizer que a ansiedade é a doença do medo, mas discordo: é a doença do controle. E em tempos ansiosos e ansiogênicos é um abraço lembrar que mal mal controlo minhas ações, mas nunca os resultados. Taí um bom exercício pro feriado: abrir mão da ilusão do controle.
Maravilhosaaaaaaaaaaa!!!
Perfeição! Perfeição!
Nossa, estive em aulas da Gloria 20 anos atrás <3