Bem-vindx à Imperfeição. Neste mês de março, as edições do Sofá da Surina foram especialmente escritas em torno deste tema. Esta primeira, sobre Renato Russo e Leonard Cohen, é uma reflexão sobre a ideia de sujeito perfeito. Na próxima semana vou falar de corpo. Por fim, na última edição do mês tem um texto bem íntimo sobre viver com este monstro da perfeição enquanto escrevia meu próximo livro.
Coloco o alarme e decido rolar a barra do Instagram. São 10.50 da manhã.
As mídias sociais não são exatamente o que se poderia chamar de surpresa; sei mais ou menos o que vou encontrar nos próximos 7 minutos. Mesmo consciente do previsível, autorizo a tela do celular a capturar meu espírito. Voilà. Agora sou uma criatura passiva alimentada pelo cordão umbilical do
algoritmo. Recebo imagens de
: gatos dormindo na mesma cesta, a amiga que acabou de pintar um mural, a xilogravura perfeita de um artista japonês com trezentos mil seguidores que jamais conhecerei, citações espirituais de um sujeito iluminado, eu mesma abraçando o meu marido por trás de bolhas de sabão.
O alarme toca.
É com esforço que descolo da tela e lembro - ainda estou aqui. Fecho o Instagram e demoro quinze segundos para voltar ao corpo. O que está acontecendo comigo de verdade agora?
Faz calor no atelier, preciso abrir a janela. Estou alérgica, a cara coçando d e s e s p e r a d a m e n t e. Óculos sujo. Um sangramento que me persegue há vinte dias. Cólica.
Isto é o que está acontecendo comigo de verdade agora.
No Instagram, não. No Instagram, o meu mundo é exatamente o mundo das imagens ausentes. Nas fotos do Instagram ninguém tem coceira
nem quer arrancar os globos oculares da cara
a vida no Insta tem um filtro que tira as rugas e as
olheiras amarelas de sono (ou de anemia)
não há a vontade de chorar
ódio engolido
falta de esperança
de grana
manias de limpeza
apocalipse climático.
As fotos do Instagram não mostram a cara de alguém que passa 50 minutos sem conseguir tirar os olhos da tela.
Leonard Cohen
Nas últimas semanas me abracei no Leonard Cohen e no Renato Russo.
Reparei o óbvio: que eles são um remédio para a murchidão do mundo perfeito instagramável. Eles são tudo que tem de mais torto e esquisito neste planeta.
Cohen é o meu O2, por isso deixo A book of longing, um dos seus livros de poesia, bem em frente à minha escrivaninha.
Em caso de emergência, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. O livro está ao alcance da mão. Se me sinto fora de lugar, abro numa página qualquer. Ler é visitar a mente de quem escreve; o livro do Cohen é cheio de desenhos interminados, impressões que ele devia anotar num caderno qualquer. A maior parte dos poemas foi escrita quando Cohen morava num monastério zen-budista americano, na década de 90. Gosto deste:
I came down from the mountain
after may years of study
and rigorous practice.
I left my robes hanging on a peg
in the old cabin
where I had sat so long
and slept so little.
I finally understood
I had no gift
for Spiritual Matters.
Ali no poema, Cohen conta que falhou terrivelmente na sua tentativa monástica. Ficou no monastério seis anos, depois foi embora. Ao sair, Cohen deixa os hábitos monásticos num cabide, pega a estrada para Los Angeles e acende um cigarro. Entendi, por fim, que não tenho talento para assuntos espirituais, confessa.
Eu também, Cohen, sou uma criatura que falha bastante. Passeio pelo Book of longing e encontro os poemas eróticos que ele escrevia enquanto vivia na monástica cabaninha de madeira, as promessas de amor que declamava no caderninho para as monjas que não lhe davam bola.
Mesmo no monastério, Leonard passava grande parte do tempo apaixonado e/ou pensando em transar. E ali, no meio do furdúncio das suas tentativas frustradas de transcendência, encontro um poema lindo, todo rimado e tradicional, em que ele fala da sua experiência de amor incondicional durante uma sessão de meditação:
The light came through the window,
Straight from the sun above
And so inside my little room
There plunged the rays of Love.
Fecho o livro. Finalmente, alguém lúcido. Finalmente alguém lindo. Cohen baixinho, fumante, elegante, o terno de alfaiataria. Minha inspiração, meu oxigênio, minha vida. Finalmente, alguém errado. Finalmente, alguém real. Finalmente, alguém como eu.
Renato Russo
Meu opiáceo querido, quem eu seria se não fosse por você?
Ouvi As Quatro Estações semana passada e fiquei lembrando das referências que o Renato combinou neste disco da Legião Urbana. Tá tudo ali, mutcholoco e ousado. Camões misturado com a Epístola de São Paulo aos Coríntios. Trechos das 4 nobres verdades do Buda, tudo é dor, e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor. A polifonia* dolorosa do jogo entre pais e filhos - a nossa condição inescapável, já que é pela porta do corpo daqueles que nos geraram que entramos no samsara.
Por um tempo, neguei a importância dele na minha vida. Renato Russo tem um quê de cafona. Rosas no palco e o vozeirão. A erudição parnasiana-punk de um homem que queria amar mas parecia sofrer de uma eterna desilusão adolescente.
Se o Renato Russo estivesse vivo, que filtro ele usaria no Instagram? Uma saturação pastel misteriosa, quem sabe? Que tipo de foto postaria?
Penso nisso e fico assustada com a minha resposta, ainda bem que ele não está mais aqui. Ainda bem que ele não tem que encarar este tipo de coisa.
Sei lá. O Renato. Um homem que se lançou ao mundo com tanta vulnerabilidade que é quase impossível não vê-lo como espelho. Pelo menos pra mim.
Clichê e gênio, forte e frágil. Brega e elegantérrimo, tudo ao mesmo tempo. Não sei se é ele, não sei se é a persona que criou. Tudo é ambíguo no Renato, uma pergunta aberta; não consigo chegar ao fim de quem ele é.
Grande demais para a ideia de perfeição.
Cohen & Renato
Recomendo esta entrevista na qual Cohen começa a conversa com a repórter tirando uma garrafa de whisky de baixo da mesa do seu quarto no monastério (só em inglês).
Meu retorno ao Renato foi culpa da Julliany Mucury, que nos últimos meses tem conversado sobre os discos da Legião Urbana no canal do YouTube Pitadas do Sal. Este vídeo aqui, no qual ela conversa sobre As Quatro Estações, é particularmente maravilhoso. Na verdade, todos os que ela fez até agora são.
Renato, o Russo é o livro da Julliany, fruto da tese de doutorado que ela concluiu no departamento de letras da UnB. Obrigada, Ju, por resgatar o legado do Renato para a nossa poesia.
Lindas: esta edição Uma palavra na qual a Aline Valek fala das angústias e pressões relacionados ao sucesso e à velocidade das mídias sociais - muito em linha com esta edição do Sofá:
*Para descrever Pais e Filhos, peguei emprestado da Julliany Mucury o termo “polifonia”.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
me gusta muito ambos e ultimamente tô numa fase fodida de Renato. piso na rua, boto o fone, atravesso o asfalto e desço pro mato abaixo de "tão correto e tão bonito, o infinito é realmente um dos deuses mais lindos".
que imagem forte essa do cordão umbilical nas redes.
isso é pura magia 🩷
Oi, Surina, tudo bem?!
Obrigada pela edição. Sua escrita sempre me provoca reflexões. Fiquei pensando sobre a expectativa que se cria em torno de uma ‘jornada espiritual’. Para mim, uma jornada espiritual é unicamente sobre permitir-se ser o que se é. Essa tal liberdade sabe…
Nessa perspectiva, faz muito sentido que o Cohen tenha permanecido no monastério pensando e escrevendo sobre amor e desejos sensuais e tenha decidido sair para fumar um cigarro. Tudo exatamente como deve ser.
Se uma prática espiritual não liberta, o que o fará?!
Obrigada pela escrita.
Obrigada por escrever.
Até breve!