São cinco da tarde e acabo de terminar de ler o livro de uma amiga. É o livro novo dela, e assim como o anterior eu termino numa sentada. O romance é bem escrito, cheio de mini-viradas precisas e de frases bem construídas saindo da cabeça de personagens que a gente quase consegue cheirar de tão próximas de casa.
Senti saudade de Brasília enquanto lia, já que a história acontece naquela cidade.
Também é um livro que usa uma linguagem experimental e corajosa para falar de um tema que me interessa muito - saúde mental e os parâmetros de normalidade.
O livro se passa dentro de uma clínica psiquiátrica.
Nunca vou escrever desse jeito. Esta é minha conclusão quando fecho o livro. Ao enunciar a frase, penso imediatamente na minha escrita, tão seca e tão direta, tão sem adornos tão sem cores tão sem
nada.
A escrita da minha amiga é uma saia de babadinhos toda feita de agulhas. A Bia escreve fazendo voltas, mas estas voltas vão perfurando aos poucos. É uma escrita que me prende.
A minha escrita é mais difícil de julgar, já que sou eu que escrevo e por isso não tenho distância suficiente para concluir nada. Mas eu tento. Estou sempre tentando.
No espelho que coloco diante do nariz, minha escrita aparece mais como uma nectarina verde, bem crocante e sem muito suco.
Eu adoro comer nectarina meio verde.
Por mais que eu tente, só consigo escrever do jeito que escrevo. Sempre escrevi mais ou menos assim. Acho que minha escrita pode mudar, claro, assim como já mudou.
Mas muda dentro dessa família de nectarinas.
Escrever livros é muito perigoso, porque você percebe que, por mais que tente, você continuará sendo quem é. E que por mais que você tente imitar a grama do vizinho, a verdade é que uma nectarina jamais será uma saia afiada de babadinhos.
Escrever livros é perigoso porque você está se lançando num campo aberto e todo mundo que te vê tem um objeto diferente na mão.
Você está lá, exposta na história que escreveu durante sei lá quanto tempo e que agora está disponível para quem quiser encontra-la.
No livro que escreve, você oferece aos olhos do outro o seu jeito de escrever, que pode ser romântico viajão sóbrio surreal dadaísta certinho lírico minimalista meloso repetitivo seco elegante engraçado inteligente esperto experimental cafona purpurinoso ou uma mistura de
tudo isso.
No livro que você escreve estão as personagens que você criou e aquelas que ficaram faltando. No seu livro está tudo de errado e de interessante que as personagens falam ou pensam, e também as virtudes e erros que você – autora – cometeu ao construir aquela personagem aquele enredo aquele lugar aqueles diálogos aquele
mundo.
Em 1974, Marina Abramovic fez uma performance chamada Rythm 0. Nela, Marina ficava parada por seis horas diante de uma mesa com 72 objetos. Junto dos objetos, ela deixava também um bilhete para o público. Era um pedacinho de papel e dizia assim:
Instruções
Há 72 objetos na mesa que você pode usar em mim como desejar.Performance:
Eu sou o objeto.
Durante o período da performance eu assumo total responsabilidade pelo que vier a acontecer.
Os objetos incluíam um rosa, perfume, mel, pão, uva, tesoura, bisturi, uma barra de ferro, uma pistola e uma bala.
Escrever livros é perigoso porque você está se lançando num campo aberto e todo mundo que te vê tem um objeto diferente na mão.
Quais objetos eu costumo usar quando entro em contato com o livro alheio?
E você?
Recomendações e notinhas
Esta semana tenho muitas boas-novas:
- O livro de babadinhos é o Você, colônia, que acabou de ser lançado pela Beatriz Leal Craveiro - uma escritora incríviel radicada em Brasília. O livro está disponível como ebook no site da Amazon por módicos R$7,00 e está participando do prêmio Kindle.
-Ferozes Melancolias, livro novo da Ana Rüsche, também acaba de chegar e agora está em pré-venda aqui, no site da editora Rua do Sabão. Como ainda não li, uso as palavras oficiais da editora para descrevê-lo: “Ferozes melancolias é um livro de ensaios e crônicas de viagem a respeito do amor e da escrita. Os textos traçam um passeio mental sobre temas duros, da perda à desilusão, a temas leves, do inesperado à alegria.” Já pedi o meu e estou com muita vontade de colocar minhas mãozinhas nele.
-Você pode ler sobre o desfecho da performance da Marina Abramovic aqui no Guardian (em inglês).
-Enquanto isso o meu livro novo, 108, continua em pré-venda no site da Benfeitoria. Se você gosta do Sofá da Surina e lê as edições regularmente, considere comprar o seu exemplar. É a melhor maneira de apoiar esta Newsletter e tudo que eu escrevo.
- Se você mora fora do Brasil, o 108 também está em pré-venda em formato Kindle aqui.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Que texto! Simplesmente incrível... Ninguém nunca vai contar uma história da mesma forma pois tem sempre a "lente especial" para enxergar o mundo. Gosto de pensar que a minha escrita é bem como uma colcha de retalhos: vou costurando pedaços de tecidos da minha história para criar algo único! Adorei essa escrita de nectarina 🫀
Ah Mari. Como gosto quando escreves sobre escrever. Fala tanto comigo. Tanto com tudo aquilo que não sei. Louca pra ler o 108 inteiro. Vou ver os livros que indicasses. A saia de franjinha e a Ana Rüshe.