Uma luz dourada entra pela janela às 6 e meia da manhã fazendo triângulos de sombra na cortina. Às 9 ela alcança a cama mal arrumada
uma mancha de sangue desbotada
nos lençóis
o corpo de alguém que não está
No fim de semana passado participei de um workshop sobre haikus organizado por um centro zen-budista dos Estados Unidos. Apesar de ser um mini-curso sobre uma forma poética específica, o workshop foi uma sorte de meditação sobre a prática de escrita. Não só de haikus, mas de outros tipos de texto, também.
Comecemos com um ensaio de definição. Haiku, criado originalmente no Japão, é o que a gente traduziu no Brasil como haicai, aquele tipo de poema que se popularizou entre nós nas últimas décadas com o Paulo Leminski. Foi na infância em Curitiba que aprendi com os poemas dele o que era um haicai. O Leminski escrevia uns haikus muito bonitos que enchem o mundo de ternura, como este daqui:
duas folhas na sandália
o outono
também quer andar
Três linhas. Três linhas que suspendem a mente num momento passageiro, mas não necessariamente três: um haiku pode ter uma linha só, e neste workshop encontrei um mundo de poetas contemporâneos brincando de escrever no vão que fica entre as regras formais e a estrutura poética tradicional.
Quanto a mim, escolho a subversão pequena de chamar haicai de haiku porque gosto da sonoridade: rái-kú. Tenham paciência comigo.
Uma das coisas que faz um haiku ser um haiku é a matéria de onde surge. Haikus partem da observação do banal, apresentada sob a forma de pequenas imagens justapostas e da relação entre elas. Os haikus têm em comum a contemplação do que ficou esquecido porque é óbvio demais, do cotidiano, do pão crocante que fez a gengiva sangrar, da salada que apodreceu na geladeira, do brinco da avó.
Chegue mais perto. Entre duas imagens há um mundo de sentidos possivelmente infinitos esperando para serem traduzidos pelo olhar. Chegue mais perto e o clichê das ideias prontas vai derreter, substituído pela poética imprevisível que a observação revela. Entre o ovo frito e a mesa do café pode haver nascimento, oposição, deslumbramento, saudade, fantasia ou um pote de manteiga.
É o jogo entre o seu olho e o mundo que vai contar o que está diante de você.
Agora, por exemplo, enxergo pela cortina meio transparente do atelier as flores selvagens amarelas que brotam como um milagre do chão de pedra deste deserto onde escolhi morar.
Tudo que morreu no inverno ressuscita na primavera. Ontem à noite uma lagartixa enorme subiu pelo batente da porta
primavera do lagarto
sol entre as flores
olhos fechados entre as patas do gato
Meu haiku sobre a lagartixa que meu gato matou é meio ridículo, eu sei.
Quando comecei a escrever o Sofá da Surina, em 2021, minha principal preocupação era não ter nada interessante para dizer. Naquela época o Sofá era mensal e as semanas passavam com nervosismo:
- E agora, meu Deus?
No arquivo do Word, eram minhas as listas extensas nas quais lutei para encontrar temas interessantes que os meus leitores talvez fossem gostar. Por exemplo: mídias sociais na contemporaneidade, livros essenciais para a leitora descolada, inteligência artificial e mais uma porção de tópicos que guardavam apenas um traço comum entre si
: eles não tinham nada a ver com a minha vida.
Afinal de contas, a verdade verdadeira é que moro no interior do Alentejo, numa vila chamada São Martinho das Amoreiras que não tem nem supermercado, e por mais que a inteligência artificial seja, sim, parte do meu tempo, preciso confessar que tenho mais para ouvir do que para dizer sobre ela.
Mas quem estaria interessado em ouvir as histórias da minha vida ordinária?
Não sei, mas pensando bem estou interessadíssima no que o Kobayashi Issa tem para me dizer sobre o Japão do século XIX onde pouca coisa acontecia:
in this world of ours
we walk above hell
gazing at flowers
Passei o fim de semana escrevendo e lendo haikus. No intervalo entre as práticas, fazíamos meditação - não dá para esquecer que o workshop estava sendo oferecido por um centro zen.
Ao fim de dois dias tive a sensação de que a pele que separa meu corpo do mundo tinha afinado.
Acho que os haikus são uma espécie de antídoto para a velocidade de hoje em dia. Pensei nisto depois que li este texto incrível que fala sobre a chatice previsível da internet nestes últimos tempos. Os haiku redirecionam a atenção e ajudam a rehumanizar o cotidiano; a vida ordinária virou um quarto onde se entra com um espírito de curiosidade e de descoberta.
- Tudo pode caber num haiku
disse numa das sessões a Natalie Golderg, minha musa da escrita criativa
: olhe por baixo das suas unhas.
Obedeci. Enquanto tentava descobrir de onde vinha o marrom escuro sob meu esmalte cor-de-rosa cintilante, ouvi a voz dela que saía pela caixa de som lendo um dos seus haikus preferidos, escrito pelo mestre japonês Yosa Buson (1716-1784):
I go
you stay
two autumns
Sim, Natalie, tudo por caber num haiku.
Tudo pode caber em três linhas, nesse jogo maravilhoso de estrutura e espontaneidade. Esta semana quero convidar vocês a escrever haikus sem medo de explorar a semântica minimalista de potenciais infinitos.
O que os seus sapatos têm para me dizer?
Nesta semana, também quero convidar vocês a escrever haikais como se a escrita fosse uma prática de reforçar a musculatura do olhar, sem um objetivo final. A escrita de haikus como prática, do mesmo jeito que a gente anda de bicicleta e sabe de algum jeito misterioso que a capacidade respiratória vai agradecer depois.
Olhar em volta e capturar a experiência - mais do que as coisas - através de uma rede feita de palavras. Por isto, então, eu também trouxe meus haikus pra vocês nessa Newsletter, assim podemos errar juntos e acertar no mesmo lugar.
No fim das contas tudo cabe
a vida inteira
dentro da palavra vida
numa linha
só.
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Haiku Recomendações
O livro Three Simple Lines, da Natalie Goldberg, na qual ela conta sua viagem para o Japão em busca dos quatro mestres do haiku: Basho, Issa, Buson e Shiki. Aqui um vídeo no qual a Natalie fala sobre ele (em inglês).
Enquanto brincamos de gritar na internet pra ver quem tem a foto mais colorida ou a vida mais feliz, os haikus brincam de contar segredos em voz baixa. Pensei nisso depois que li este texto maravilhoso da flowsmagazine sobre nossa tendência atual à hipérbole - depois que terminei, apaixonei pelos haikus de novo.
Não sei exatamente por que, mas a verdade é que eu amo a Newsletter do Angelo Dias. Na verdade eu acho que sei: é porque gosto do jeito como ele escreve e porque os textos dele são honestos. Sinto-se uma voyeur - ele me dá todo o espaço para entrar no mundo dele.
O Dani Cariello começou há pouco tempo uma coluna de crônicas aqui no Substack, e a última é a minha preferida:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
pés quentes
ventre pulsando
e o barulho da geladeira
o vento frio
a raiva fresca
histórias duras dissolvidas em duas xícaras de café