Tenho a impressão de que estamos vivendo num mundo superhabitado por respostas. Abro o Instagram e encontro solução para todas as necessidades humanas, principalmente as que não tenho ainda. Basta cinco minutos rolando o Feed e descubro:
- que devo castrar meus gatos quando completarem seis meses
- sou mais criativa de manhã
- que o melhor tipo de filtro para a água do meu poço artesiano é da marca Berki
Há fórmula para tudo. Assim é que se escreve, assim é que se cuida do gato, essa é a quantidade de horas que uma mulher de 43 anos deve dormir por noite, assim é que se termina de redigir um livro de sucesso em doze passos. Pensando agora, me ocorre que as fórmulas são escritas de um modo particular. São enunciados em linha reta na direção de um resultado, como:
e=mc2
De um jeito parecido, o texto que se esmera em entregar respostas ao leitor também corre o risco da linearidade.
Mas este não é bem o meu ponto. Venho aqui, mesmo, para relembrar - vocês, eu - que um texto não é necessariamente resposta e nem tem que dar solução para perguntas.
O texto pode ser muitas coisas. O texto pode ser uma exploração partindo da observação da realidade. O texto pode ser uma epifania circular sobre o gato dormindo. O texto pode ser um libelo a favor de baratas voadoras. Um texto que encosta nas cortinas transparentes do meu atelier, lindas, as minhas cortinas que deixam o sol nascente atravessar para o lado de dentro redimindo os problemas deste mundo todos os dias de manhã.
Estes tempos topei com a ideia de pergunta aberta, uma formulação muito poética da professora budista Elizabeth Namgyel. A pergunta aberta é simplesmente uma pergunta que não precisa ser respondida, um enunciado que abre um espaço de contemplação dentro da gente, uma vastidão sem lugar para segurar.
Talvez a resposta nunca apareça ou sequer exista.
Um texto pode ser uma pergunta aberta.
Na edição de hoje, quero falar sobre dois livros que li recentemente e que me fizeram pensar neste tipo de escrita sem respostas nem moral da história que é só mesmo lanterna mostrando um caminho qualquer à noite, no meio da floresta de letrinhas.
The long quiet quiet highway e The Great Faillure, escritos pela Natalie Goldberg, são autobiografias que fizeram parte das minhas leituras enquanto eu percorria o caminho de Santiago em maio & junho deste ano.
Long Quiet Highway, publicado em 1993, é um relato no qual a autora conta sua trajetória de doze anos como estudante do professor zen budista Kataguiri Roshi. Natalie deve muito ao mestre, que a encorajou a experimentar a escrita como exercício meditativo e lançou as fundações para o que viria a ser tanto a sua prática espiritual quanto sua vida de escritora.
Long Quiet Highway foi escrito de dentro do buraco de amor e luto que seguiram à morte de Roshi, e é um daqueles livros redondos e quentes como uma xícara de café com leite morno.
Além disso, o livro também é legal porque pinta um retrato da cena budista nos Estados Unidos das décadas de 1970 & 1980. Foi uma época de contracultura que eu queria muito ter vivido. Lamas tibetanos desembarcavam do exílio em pleno universo yankee, Allen Ginsberg escrevia poesia beat enquanto estudava com o visionário lama Chogyam Trungpa, Ram Dass em êxtase trocava os experimentos com LSD por meditação após retornar da Índia, os mestres zen japoneses criavam monastérios na Califórnia e em Minesotta.
E aí, onze anos depois, a autora publica o terrivelmente difícil The Great Faillure. É um livro de espírito radicalmente diferente, escrito por outra Natalie. Será que as duas são a mesma pessoa?
Escrevendo, podemos ser muitas. Em The Great Faillure, Natalie explora em queda livre a crise pessoal que atravessou ao descobrir que Kataguiri tinha casos secretos com várias alunas. A autora só ficou sabendo o que rolava no zen-do anos após a morte do mestre. O livro, então, é uma tentativa de fechar o círculo da relação com o professor, com a prática, com os ensinamentos. Com tudo.
The Great Faillure é um livro um pouco triste de uma autora cheia de perguntas que ninguém consegue responder. É, também, um livro corajoso que custou a perda de grande parte das relações da Natalie junto à comunidade espiritual – sanga – da qual fazia parte há duas décadas. Os outros discípulos de Kataguiri não gostaram de encontrar uma publicação falando sobre a bucha que já era conhecimento geral mas ninguém queria admitir.
Parece que a Natalie teve alguma dificuldade de circulação na comunidade zen depois que o livro foi publicado. Penso nisso e sinto grande pesar. Diz a lenda que, no meio da desolação, a escritora recebeu uma ligação de Joan Halifax, monja budista residente num zen-do em New Mexico. Obrigada pelo seu serviço ao dharma. Você gostaria de dar uma palestra sobre o seu livro aqui?
(As maravilhosaa monjas… Elas serão assunto de uma edição especial do Sofá.) Ao explorar o tema da sua frustração com o professor, Natalie ironicamente contribuiu para valorizar o papel de Kataguiri como um grande mestre, e do zen budismo como prática espiritual. The Great Faillure acontece no espaço insolúvel da contradição: o reconhecimento inquestionável da importância do professor lado a lado com o elemento humano do erro. Estamos no samsara, afinal.
Como herdeira dos ensinamentos, ela faz exatamente o que ele aconselhou ao longo dos doze anos em que caminharam juntos
: se for verdade, não tenha medo de escrever.
Fazia muito, muito tempo que eu queria ler estes livros. A razão não é difícil de entender. Neste mês de setembro completo dez anos de prática dentro de uma comunidade espiritual. Pode parecer bobagem, mas confesso que não é fácil escolher o incompreensível. Uma década depois da primeira meditação, já me acostumei às pessoas que perguntam se estou num culto, por exemplo. Se trabalho. Se me iluminei. Ou o que faço aqui, no interior do fim do mundo.
O problema, claro, não são as perguntas alheias. O incômodo vem daquilo que as perguntas revelam sobre as dúvidas que levo comigo. Será que é maluquice ter me enfiado num negócio desses? Como me sentiria caso rolasse uma decepção com meu professor ou com a instituição que o representa hoje em dia? Será que eu abandonaria o dharma? Será que continuaria seguindo os ensinamentos?
Peguei os livros procurando respostas, mas não encontrei muitas.
Natalie não as tem.
Terminei as leituras no vigésimo oitavo dia de caminhada rumo a Santiago de Compostela. Ao desligar o Kindle, concluí que os livros não tinham dado solução nem para justificar minha vida espiritual, nem para lidar com frustrações que um dia porventura aconteçam. Ao concluir as leituras, fiquei só flutuando num espaço bonito - pergunta aberta – no qual senti uma enorme
alegria. Coloquei os pés para o alto no beliche e deixei as palavras se espalharem pelo meu corpo, em respostas que não eram bem respostas.
O que Natalie divide conosco é a sua jornada. Sempre falo sobre a Natalie e seu método de escrever em fluxo. Vejo o método nas páginas destes livros que escreveu: o funcionamento orgânico da mente em ideias que vão para lá e para cá até se unirem num raciocínio final cheio de cores e nenhuma conclusão definitiva.
Quando leio, estou me relacionando com a escritora Natalie, com a sua mente de autora, com as suas práticas e os seus fracassos e as suas dúvidas e as suas epifanias. Quero entender como ela lida com a experiência. Desejo receber a sinceridade da sua escrita perfurando as membranas superficiais da civilidade e dos acordos que fixamos silenciosamente entre nós para continuar andando por aí, vestidos com nossos muros.
Na escrita dela, ausculto a energia que a move. Quero conhecer seu ponto de vista porque sei que vou encontrar alguma coisa minha ali. Não interessa se é ficção ou se a escrita é autobiográfica. Para mim, dá na mesma.
Todos nós, humanos, temos uma forma de parentesco, e a sinceridade na escrita é uma força que consegue nos relembrar deste parentesco através da união entre escritor e leitor, mesmo que nunca nos encontremos fisicamente.
O que eu quero dizer, em outras palavras, é que o texto pode ser muitas coisas além de resposta. Quando lemos, não queremos necessariamente solucionar uma questão. Acho que lemos, também, para encontrar com outra pessoa, e ao encontrá-la também nos encontramos.
E isto é o que eu tenho para hoje.
Notinhas & Recomendações
O poder de uma pergunta aberta: o caminho do Buda para a liberdade foi escrito pela Elizabeth Mattis-Namgyel e publicado no Brasil pela editora Lúcida Letra, que tem um catálogo incrível.
A Joan Halifax é diretora de um centro de prática zen que conta com um corpo de colaboradores muito bons, incluindo a Natalie. Sempre rolam dharma talks por lá com artistas e pesquisadores - dá uma olhadinha aqui no calendário. Este mês, por exemplo, tem uma dharma talk com a Rebecca Solnit (!).
… e há uma semana teve dharma talk com a Natalie, que você pode assistir aqui (só em inglês).
Acho que vocês notaram: continuo com a minha série de ilustrações sobre gatos. Perdoem minha obsessão, descobri aos 43 anos de idade que amo estes animais. Esta última obra, com o bichano olhando para a imensidão da pergunta aberta, é enorme para os meus padrões (mede 40X60cm) e uma das minhas preferidas. Os originais estão à venda.
Boa notícia nas terras do Buda
Veio no email, eu não esperava: fui convidada para expor algumas ilustrações numa coletiva no Templo Mahabodhi, na Índia. Não consigo imaginar outro lugar no planeta Terra onde teria mais honra de expor as minha obras. O templo fica em Bodhgaya, perto da bodhi tree - um lugar muito especial, porque foi onde o Buda Shakyamuni se iluminou.
A exposição é parte do Siddharta’s Festival, que está sendo produzido pela Sidharta’s Intent (uma organização dirigida pelo lama Dzongshar Khyentse Rinpoche). Ainda não sei se vou mandar as obras ou se vou até lá… Quem sabe? Numa dessas, em novembro teremos os Diários de Boghgaya aqui no Sofá.
Ah!, e que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
A decepção com mestres é algo que faz parte do aprendizado, na minha opinião. Se não fosse pelo motivo grave (tb no meu ponto de vista), talvez teria sido outro... enxergar a humanidade das pessoas, com seus lados feios tbm, pode ser libertador. Ler Natalie tá na lista, acho que vai ficar pro ano que vem... curiosa. E parabéns pela exposição, se for possível e pra sua felicidade, se vc for vai ser gostoso te acompanhar . Beijo
Uau!!! Vá para a Índia!!!! Eu amo e vivi tanta coisa linda por lá que digo que uma parte minha nunca mais voltou. Acho que vai ser incrível para você. Amei o texto. Seus textos, muitas vezes, não me trazem respostas, nem as procuro quando leio, seus textos trazem encontros, reflexões, puxam memórias... Muito obrigada por escrever! bjssssssss vou torcer para vc ir!