Por que escrevemos? Por que escrevo?
De vez em quando meu terceiro olho do desejo se abre entre as sobrancelhas e enxergo diante de mim imagens nítidas do que eu gostaria de ser.
O olho mágico me apresenta diferentes cenários ideais, dependendo do dia. Num dos futuros perfeitos, sou uma monja serena e genuinamente desinteressada dos bens materiais meditando para o bem de todos os seres diante de uma enorme estátua dourada do Buda. Em outros dias, o olho faz com que eu me veja como uma alegre escritora de livros infanto-juvenis.
E muitas vezes, muitas mesmo, o olho do desejo me revela uma vida perfeita na qual tenho um profissão anacrônica que mais ninguém neste mundo tem.
A verdade é que eu carrego em mim o estranho desejo de ter uma ocupação específica e antiga. Entre as profissões de nicho, o olho do desejo me mostra feliz como uma relojoeira consertando relógios numa lojinha escondida do centro de Lisboa. Ou tradutora de sânscrito. Ele também me projeta como uma restauradora de obras de arte medievais, competente e segura, humilde e forte. Horrivelmente chata, portanto
: ainda bem que o olho do desejo mostra, mas não realiza.
Quer dizer – realiza mais ou menos. Ultimamente, este terceiro olho tem aproximado os desejos anacrônicos da minha realidade vivida.
Explico: nunca encostei em ferramentas de inteligência artificial para construir um texto, mesmo sabendo de todas as vantagens que a nova tecnologia oferece. Ignoro-as redondamente e prefiro demorar um tempo infinito para escrever, como sempre fiz. Analogicamente. Cada vez mais anacronicamente.
Será que serei a última a resistir às tentações do ChatGPT? Tenho a impressão de que o terceiro olho está finalmente realizando meus desejos mais profundos. Logo logo me tornarei uma relojoeira da escrita, eu e meu documento aberto do Word. Prometo
: este texto que você está lendo foi 100% criado por um ser humano.
Por que escrevemos? Por que escrevo, na verdade?
Com toda a discussão sobre as tecnologias de inteligência artificial, a incerteza anda nos rondando. Nos fóruns de escrita de que participo, o tema é a pauta da vez. Cada uma de nós faz a sua aposta sobre o que acontecerá. Em resumo, oscilamos entre a confiança de que somos muito, insubstituivelmente humanos, e o medo de que a profissão de escritor desapareça de vez.
Não dá para saber. Pode ser que a profissão de escritora já esteja desaparecendo no exato momento em que escrevo esta cartinha. Ou pelo menos que esteja desaparecendo do modo como existiu até hoje.
Apesar das possibilidades escabrosas, o fato é que continuo escrevendo e não tenho a mínima intenção de parar.
Por que, então, eu escrevo?
Decido responder com uma lista:
- porque é o que sei fazer
- porque escrever me ajuda a organizar pensamentos e emoções
- escrevo porque é bonito
- escrevo porque gosto de inventar um mundo possível
- escrevo porque escrevendo eu começo a acreditar nas ideias e o mundo do samsarão fica mais habitável
- escrevo porque escrever é o que eu faço
Escrever me lembra do que é bonito, mesmo quando escrevo relatos de horror ou trauma. Quando habito este pedaço pessoal da escrita, as discussões sobre inteligência artificial me afetam de outra forma: tá, tudo bem. Uma máquina pode até fazer um texto no meu lugar. Mas se ela estiver fazendo, não serei eu. Porque só eu posso fazer o que eu faço.
Claro que a importância de alcançarmos um texto final não pode ser desprezada. O texto final é o testemunho das nossas práticas diante da folha em branco, e poucas coisas dão mais alegria do que terminar uma peça escrita de que a gente gosta. Mas há mais na escrita do que a combinação entre letras e palavras e frases. Há o processo de criar estas letras e palavras e frases - então aqui, de novo: se uma máquina estiver fazendo, não serei eu. Porque só eu posso fazer o que eu faço.
O processo de escrever tem algo de profundamente re-conectivo, no sentido de refazer ligações. Escrever é um processo de criar e de refazer sentidos. De estabelecer nexos entre o que um dia foi invisível dentro de nós. Assim como na cicatrização de uma cirurgia
uma amiga explicou que são sete camadas de tecidos a se regenerar quando operamos o abdômen
uma página por vez
cada nova ponte entre os músculos
um capítulo a mais.
Enquanto você recebe esta carta na sua caixa de email, carrego o porta-mala na direção de um retiro de nove dias no qual vou alternar práticas de meditação e de compaixão aqui no sul de Portugal. Preparei a mochila com meus objetos sagrados – o japamala (rosário budista de preces), fotos das minhas deidades preferidas, almofada de meditação. Junto deles vai meu caderninho do momento (um de capa rosa!) onde anoto como me sinto. É isto: sempre que vou fazer um retiro, levo um caderninho. Sempre que saio de casa, meu caderninho vai junto.
O caderninho vai ao lado da foto de Avalokiteshvara, que é a manifestação budista da compaixão. O caderninho, por outro lado, é a manifestação silenciosa da escrita. Uma das formas que uso para me regenerar é encontrar Avalokiteshvara, e para fazer isto observo a sua imagem. Outro caminho de regeneração é prostrar-me diante do caderninho de capa cor-de-rosa, e para fazer isso começo só tem um jeito. Escrever.
Hoje o texto é curto e é um convite: e você? Por que você escreve?
Novidade
Finalmente estou montando um curso de escrita! A Escrita Reconectiva vai rolar em junho (provavelmente) e a princípio vai durar um mês. A ideia é sentarmos algumas vezes por semana para escrevermos juntos. Os encontros de meia hora serão concentrados na prática e pensados a partir de temas que nos levem a diferentes possibilidades de reconexão.
Organizar este curso é um projeto antigo. Já tem anos que eu pesquiso e experimento formas de aproximar a escrita das práticas budistas, das contemplações sobre compaixão e da meditação. O curso é uma forma de trazer tudo isso para a folha em branco.
Informações e detalhes em maio, mas já te deixo aqui este convite.
Recomendações
- Carga Viva, novo romance da Ana Rüsche que sai pela Rocco, acaba de entrar em pré-venda - e eu estou morrendo de vontade de ler. É um livro que une poesia, crise climática e a redemocratização no Brasil. Como é que ela mistura isso tudo? Não sei, porque ainda não li. Mas ela conta um pouco por aqui:
Apóie o Sofá
As pinturas que ilustram o Sofá são obras minhas e estão à venda (originais e prints). Entregas para o Brasil e para a Europa. Detalhes e encomendas por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
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Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Escrevo para poder transitar em outros mundos, para conseguir dormir à noite sem me debruçar sobre as dores d'alma que tenho. Como não escreve sobre nossos sonhos, como não olhar pelo buraco da fechadura de outros mundos. Isso me faz escrever.
também sou do time que nunca usou a inteligência artificial para escrever. não condeno a prática, mas gosto tanto de escrever, de eu mesmo escolher e combinar as palavras, que não vejo muito sentido em delegar essa função.