Este foi oficialmente o meu Ano da Newsletter. Em 2023, o Sofá da Surina ocupou um espaço especial na minha vida. Escrevi ou editei textos quase todos os dias para enviar a vocês aos sábados, com exceção do último de cada mês. Algumas vezes entrei tanto no ritmo que deixei de lado a folga oficial do Sofá e enviei um texto novo todos os sábados do mês, sem exceção – foi o que aconteceu, por exemplo, durante os 35 dias em que fiz o Caminho de Santiago a pé.
Escrever toda semana era um desejo antigo que hesitei em concretizar antes porque não sabia se ia dar certo. Foi ouvindo a Ana Rüsche numa das nossas aulas de escrita criativa que decidi tentar usar o Sofá em 2023 como uma newsletter e um experimento de escrita. E aí, como seria ter o compromisso de escrever pra alguém três vezes por mês? Afinal de contas, o que é que eu tenho de tão interessante para contar toda semana?
Dezembro já está quase na metade e este é um balanço estranho para fechar um ano quente, bélico e incompreensível que não teve pé nem cabeça, mas observo assustada o horizonte de 2024 com um sorriso. Em tempos de calamidade planetária, celebrar felicidades pequenas é uma obrigação de sanidade. Da minúscula cápsula chamada meu corpo, celebro a realização do sonho de ter conseguido escrever textos todo dia e enviá-los semanalmente.
É sobre estas coisas que quero conversar nesta edição. Sobre escrever Newsletter, sobre o Sofá da Surina, sobre o final do ano e principalmente sobre algumas descobertas importantes que tive escrevendo (quase) todos os dias e enviando as edições (quase) todos os sábados.
Espero que de alguma forma estas experiências sirvam para vocês.
Começo pela parte mais saborosa: a coisa mais importante que me aconteceu quando aumentei a periodicidade da newsletter foi observar minha escrita se tornando o pão de cada dia. Escrever deixou de ser uma vaca sagrada para virar parte da vida.
Nas práticas espirituais contemplativas – o budismo, por exemplo -, entender intelectualmente um ensinamento é só um pedaço do caminho. Tomemos o ensinamento da impermanência, por exemplo, segundo o qual tudo tem por destino mudar. Um dia todas as criaturas que amo e o meu corpo vão morrer.
É relativamente fácil entender intelectualmente a impermanência. Outra coisa, muito diferente, é vive-la, ou seja, fazer amizade com ela e experimentar os benefícios que a compreensão pode nos dar no momento efetivo do luto. O ensinamento precisa entrar na gente. É preciso que o compreendamos com outras partes que não apenas a cabeça, por isso a gente medita, contempla e tenta praticar em pequenos momentos do dia a dia. Tipo: esta louça suja vai passar. Ou: este ataque de pânico vai passar.
Escrever tem algo disso.
Uma coisa é pensar em como vai ser escrever todos os dias. Outra é escrever todos os dias, apertar o botão Enviar e sentir angústia ou medo ou nada. Ou lidar com o fato de que o tema que você achou que ia abordar tomou um caminho completamente diferente do planejado quando encontrou o papel.
Escrever o Sofá me ajudou a descobrir melhor que tipo de escrita é a minha.
Estou convencida de que ficar com a escrita é um pouco como observar a própria mente. De tanto escrever, aprendi a identificar ideias e estruturas recorrentes no texto, por exemplo. Elas ficam lá, visíveis, registradas em palavras.
Ver as repetições no texto dá um pouco de vergonha, já que elas revelam minhas inseguranças e limitações. Às vezes dá um pouco de orgulho, também, porque mostram que estou escrevendo na direção de uma voz própria com imagens consistentes que aparecem regularmente no meu universo.
Posso dizer com segurança que não sabia que escrevia do jeito que escrevo até ter que escrever quase todos os dias. Não sabia que usava tanto mas nem tanto e. Foi preparando as edições semanais do Sofá, ainda, que percebi a constância do uso da palavra talvez nos textos. Eles estavam sempre presentes, milhares, infinitos, repetidos, um mantra, talvez talvez talvez talvez.
Parece um detalhe besta, mas esta percepção foi algo imenso. Soube imediatamente o que o uso excessivo do talvez significava no meu caso: eu tinha medo de afirmar minhas ideias. Descobrir isto foi bonito. Descobrir isto foi uma mini-libertação que veio deste jeito
: agora posso dizer o que acho sem hesitar ou me proteger com um talvez.
Muitas vezes aprendemos que não podemos dizer certas coisas em público ou o que o que dizemos não é importante. Isso acontece, por exemplo, se você é mulher e teve experiências de ser interrompida o tempo todo.
Comecei a editar os rascunhos e a remover os talvez para dizer o que achava. Comecei a querer dizer muitas coisas no Sofá, e ao fazer isso fui brincando com as minhas ideias.
Claro que eu sabia que estas ideias tinham arestas e que eram provisórias. Mesmo assim, permiti-me enuncia-las com força de primeira vez. Sem me dar conta, fui ficcionalizando um pouco a minha existência, já que as ideias não falavam tudo sobre mim - elas revelavam só uma parte. Aos colocá-las na minha boca de autora e a revelar partes específicas de mim, fui criando uma própria personalidade no texto. Ou seja: além de autora, virei também personagem.
Essa foi uma prática maravilhosa que me deu liberdade para escrever sobre mim mesma em primeira pessoa de forma biográfica e ao mesmo tempo ficcional, sem levar tudo tão a sério. É mais fácil tomar distância e se divertir quando a gente não leva as coisas de um jeito tão rígido.
Não tinha ideia de que algo assim ia acontecer quando decidi, há um ano, que ia escrever toda semana.
Em 2019, fiz um curso de escrita criativa com uma professora americana num centro de estudos budistas no norte da Índia.
Na época eu vivia uma fase de prática espiritual na qual toda a minha energia se dirigia para entender o que estava por trás da minha auto-imagem. Tudo que era pessoal me parecia narcisista. Escrever sobre mim? Para que? E afinal de contas, o relato autobiográfico interessa mesmo pra quem?
A professora ofereceu dois cursos, ambos à base de doações voluntárias. O primeiro, sobre escrita de diários. O segundo, sobre relatos de viagem.
O instituto ficava no prédio onde antes funcionava um monastério budista. No fundo da sala havia uma estátua dourada de Manjusri – a deidade do budismo tibetano que representa sabedoria. Os workshops tinham uma única regra: não podíamos comentar os textos uns dos outros. Ficávamos todos sentados em almofadinhas no chão; a professora nos dava temas simples, escrevíamos e depois líamos os textos na frente da turma.
Ao ler, exercitávamos uma espécie de confiança. Ao ouvir, exercitávamos a escuta sem julgamento.
Ao terminar, senti que me relacionava com uma parte muito íntima dos outros participantes - aquela parte que tinha virado texto. Era algo vulnerável e delicado. Era algo muito verdadeiro. Era o oposto do narcisismo.
Aqueles workshops refundaram a minha escrita e estão no coração desta newsletter.
Minha ideia inicial com o Sofá era discutir temas profuuuuundos. Tive que fazer muitos rascunhos e sentir bastante gastrite para abandonar a ideia e perceber que seguir aquela proposta era tortura.
Escrevendo toda semana, entendi que o que estava me atraindo, mesmo, era a vida que levo nesta cidade minúscula do interior de Portugal e como tento usar esta vida como parte da minha prática espiritual. Falar sobre o que me interessa fez com que eu sentisse de novo a alegria genuína que me trouxe, ainda criança, para a folha em branco - uma alegria que tinha ficado perdida em algum lugar do caminho quando virei adulta.
Neste 2023, escrevi sobre os meus gatos, sobre trabalhar como garçonete, sobre medo e ódio, sobre minha peregrinação a Santiago de Compostela e sobre a minha primeira exposição na Índia. Escrevi também sobre meu sangramento misterioso, sobre deixar de ser vegetariana e engordar.
Descobri isto: tudo pode virar texto.
Mas o compromisso de ter que escrever toda semana também é uma escolha que põe de lado outras escolhas. Em 2023, deixei suspenso um romance que tinha começado. Deixei suspenso, principalmente, o tempo livre de não fazer absolutamente nada. Escrevi enquanto viajava. No caminho de Santiago, escrevi em cadernos e no celular. E foi maravilhoso.
Ainda não sei como será o Sofá em 2024. Só sei que vai ser diferente. Um círculo se fechou, mas esta não é uma fala solene de encerramento porque o Sofá vai continuar acontecendo. Ela é mais a percepção de que tudo aquilo que eu tinha pra falar do jeito como estou falando terminou. Foi uma experiência linda e (como tudo)
impermanente.
Depois da temporada na Índia, em outubro e novembro, decidi que chegou a hora de realizar outro desejo antigo - o de fazer práticas espirituais formais longas diariamente. Arrumei meu altar e comecei na última segunda. São muitas horas por dia, provavelmente nos próximos três anos e com retiros no meio. Será que vou ter tempo para continuar escrevendo todas as semanas?
Ainda não sei. Em 2024, talvez o Sofá da Surina seja quinzenal. Pode ser que continue semanal e tenha textos mais curtos, ou alterne textos curtos com longos. Aliás: vocês têm algum tema que gostaria que virasse uma edição do Sofá?
E antes de terminar: obrigada por ler o Sofá da Surina. Mesmo. A presença invisível de vocês é aquele ímã que me faz sentar na frente do computador e cumprir a tarefa de colocar palavras em ordem e praticar escrita todos os dias. E é a compaixão da leitura de vocês que faz a mágica da escrita acontecer.
E se tiverem tiverem ideias, desejos ou sugestões para o Sofá, deixem aqui nos comentários, tá bem?
Notinhas
Este texto do Eric Novelo sobre gatos e mídias sociais é absolutamente lindo:
Saiu a primeira edição de A Vida e a Corrida, uma newsletter colaborativa criada pela Ana Rusche falando sobre correr. O primeiro texto é um relato do Rodrigo Casarin:
Ah! E que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
Foi uma linda temporada! Assim como a próxima também será, do jeito que for, no fluxo da transformação. E para reforçar, amo sentar nesse sofá e ler suas palavras ordenadas (e inspiradoras) <3<3<3
Que texto lindo de descobrir!
E mais uma vez...
Descobri isto: tudo pode virar texto.
Esse foi um tapa excepcional, me mostrou o quanto preciso acreditar que tenho algo a dizer, que mesmo a vida na cidade grande, preso em um trabalho rotineiro pode ser, ter espaço para temas interessantes.
Obrigado.