Na sala do meu apartamento de um quarto no fim da Asa Norte, um amigo da repartição sem grandes ambições espirituais me contou
- isto era 2010 –
que tinha começado a meditar. Através da concentração numa poderosa luz azul visualizada entre as sobrancelhas, exatamente naquele lugar mágico chamado
terceiro olho, meu amigo viajava diariamente por reinos interdimensionais nos quais seres divinos transmitiam paz e lhe ofereciam as respostas que sempre tinha procurado sem nem saber.
Ele borbulhava toda a autoconfiança que me faltava na vida. Perguntei-lhe todas os detalhes com uma curiosidade enorme visceralmente amarrada a uma inveja do mesmo tamanho. Assim que ele saiu pela porta, entrei na internet procurando a linha espiritual na qual ele meditava. Encontrei em dois segundos. Sem razão aparente, nada em mim
nada mesmo
ficou interessado na luz azul. A tradição dele me pareceu bizarra e eu não queria me meter com assombrações de outros reinos sem ter certeza de que era o caminho certo. Mas a conversa me deu vontade de meditar, talvez em outra linha espiritual, por isso quando mudei para Paris em 2012 decidi que iria ter as mesmas experiências do meu amigo.
Comecei com o budismo tibetano num instituto que ficava nos arredores parisienses. Na mesma época encontrei também um pequeno zendo no Marais, o bairro boêmio que é tipo um reduto LGBTQIA+ na capital francesa. Pelo portal secreto de uma loja de artes e antiguidades orientais a gente descia escadas íngremes até encontrar um pequeno salão zen no subsolo infiltrado até a medula pela elegância minimalista japonesa. Ao centro, na parede do fundo, uma estátua do Buda. Em volta, um punhado de parisienses charmosos vestidos de quimono preto.
O sino tocou, todo mundo ficou em silêncio. Encarei a parede por vinte minutos e tudo que consegui naquele terço de hora foi querer comer os tijolos da parede de tanta angústia.
Fui algumas vezes para estes dois lugares budistas, horas e horas de metrô ou bicicleta, sempre com a esperança de encontrar um mundo invisível capaz de me redimir. Depois de três meses, entreguei os pontos. Passei a cantar mantras indianos num centro de yoga às sextas.
Repetir mantras para Ganesha e Shiva me dava um pouco mais de leveza.
Não encontrei seres divinos nem a luz cósmica portadora de respostas. Não encontrei nem mesmo alguma sorte de estabilidade mental nestas minhas tentativas frustradas de meditação. Era mesmo o contrário: a cabeça pensando desesperadamente em quando aqueles vinte minutos iriam finalmente
acabar.
Tudo que me aconteceu foi uma frustração, uma grande frustração de beco sem saída
se nem isso adianta, o que então é que vai adiantar?
Era uma frustração muito triste que silenciei pragmaticamente, já que ela parecia enunciar algo grande demais para caber neste corpo:
- você não presta para nada, nem para ser filha de Deus/do cosmos/da Grande Nave Mãe/do Buda.
Um ano depois, saí para andar de bicicleta por duas semanas com uma amiga e quando os quinze dias acabaram eu não voltei para casa. Ela pegou o trem de retorno enquanto eu continuei pedalando
pedalando
pedalando
5000 quilômetros sozinha pela Espanha. Nas primeiras duas semanas de viagem, levava mais ou menos duas horas para que os meus rancores se acalmassem e eu pudesse curtir a estrada. Como eu pedalava muito, sobravam ainda umas seis horas diárias em cima do selim nas quais a mente ficava distraída de mim mesma e eu encontrava um prazer delicioso na endorfina e nas árvores e no vento e nas pernas cansadas da
subida. Não havia muita coisa mística, mas havia calma. Mesmo a chuva e o frio, tudo parecia
bonito. À noite, eu encostava as mãos no chão para ver qual o melhor lugar para ancorar a minha barraquinha azul
intuição
disse a menina que me fez companhia por uma semana entre Santiago de Compostela e Porto
você tem uma boa intuição.
Foi no fim da viagem de bicicleta que comecei a meditar de novo. Ao contrário do que tinha acontecido antes, sentar com a minha mente pareceu natural e óbvio. A viagem tinha me apresentado um novo lugar onde eu conseguia me habitar. Comecei a meditar todos os dias, sem muita rotina, às vezes mais, às vezes menos.
Isso aconteceu há mais de uma década.
Pensei que se meditasse muito a minha mente ficaria definitivamente em paz. Para mim era como se meditação fosse um tipo de currículo escolar cumulativo no qual você vai ganhando mais pontos e mais conhecimento à medida que progride na linha temporal.
A mente ficaria cada dia mais tranquila, e claro, obviamente, um dia o caminho da mente seria o de ficar tão calma, mas tão calma, que iria virar pura luz. Meu corpo iria junto e nós dois, corpo e mente, atingiríamos o nirvana, a terra pura onda nade de mal iria nos
acontecer.
Longe, bem longe daqui. A meditação me protegeria do mundo terrível.
Não posso refutar este tipo de afirmação porque pode ser que tenha acontecido com algum ser maravilhoso da face desta Terra, mas hoje em dia mudei de ideia. A iluminação não tem necessariamente a ver com o acúmulo de horas de meditação. Acho que é mais um tipo de insight que acontece quando a mente deixa de ter as limitações para ver as coisas como são, sem as minhas projeções, medos ou preferências.
A iluminação deve ser tipo uma correção de perspectiva, mas quem sou eu, realmente, para falar de iluminação? O que eu posso dizer é que a meditação não trouxe nada do que eu imaginava.
Mas ela me fez entender profundamente que não tenho o mínimo controle sobre os meus pensamentos.
E que aquilo em que penso é aleatório e na maior parte das vezes uma grande ilusão que prevê coisas que nunca acontecem, lamenta ou tenta mudar coisas que passaram - e que, portanto, não têm solução.
Uma vez meditei tanto e com tanta obstinação que encontrei um lugar da minha mente meio proibido. Foi tipo uma porta que abriu para um reino de monstros, e os monstros foram saindo daquela direção para o lado de cá, causando ataques de pânico que duraram três anos.
Procurei respostas, encontrei novas técnicas, fiz mais meditação e os monstros pararam de me assustar depois de um tempo. Ficou tudo mais vazio dentro de mim, melhor do que antes, mas deu um trabalhão.
Há cerca de um mês introduzi disciplina na minha vida. Passei a meditar mais ou menos duas horas por dia. Às vezes medito mais e às vezes menos; duas horas é a média.
Anoto as horas de prática num caderninho.
Por enquanto, alcanço a enunciação provisória de que depois de duas horas minha mente começa a ser absorvida pelo silêncio e tudo em volta fica em paz. Não só a mente fica em paz: o mundo em volta de mim se aquieta.
Há dez anos, comecei a deixar coisas pra trás para me dedicar com mais intensidade às práticas espirituais. País, emprego na repartição, profissão. Nunca me arrependi e ninguém me criticou frontalmente a respeito da escolha, muito embora alguns amigos às vezes deixem escapar a preocupação de me ver num culto ou seita.
Tudo bem, acho que eu sentiria o mesmo se estivesse do outro lado.
De qualquer modo, sempre que me perguntam sobre práticas espirituais, digo que faço meditação e o interlocutor se acalma. Minha resposta é uma mentira, porque a meditação é um método num universo feito de cosmologia, experiências, rituais e práticas cotidianas mágicas das quais participo alegremente.
Mesmo assim, agradeço àquelas pessoas que fizeram o trabalho de popularizar a meditação e traduzi-la para uma linguagem laica. Quando falo que medito, pensam que sou sóbria e profundamente sensata.
Há muitas técnicas de meditação. E existem atividades profundamente meditativas.
Meditação é só uma palavra que a gente usa para falar de um milhão de maneiras de observar e treinar a mente, muito embora a própria ideia de que a mente pode ser treinada me pareça um pouco absurda se por treinada queremos dizer algo como adestrar um animal (o que por si só é horrível).
A mente é um treco selvagem cheio de ideias.
Gosto de ver a meditação como um jeito de observar da mente, aproximar-se, conhece-la e fazer amizade com ela.
Estas são algumas atividades que considero meditativas:
- tricotar
- lavar a louça
- construir mesas e outras peças de mobília com madeira velha
- fazer o jardim
- pintar
É isso que tenho para escrever sobre meditar.
Meditação é uma destas palavronas em torno das quais há um monte de expectativas e de promessas que, de tão inalcançáveis, só podem ter por destino
falhar. Demorei muito para conseguir meditar possivelmente porque as promessas eram tão grandes
eu, tão pequena
a mente perdida na lista de compras
xampu, sabonete, veja multiuso, esponja.
Quando medito, minha mente sempre mostra o futuro. Raramente, muito raramente mesmo, penso em outras coisas que não sejam as que tenho que fazer. Além disso meu corpo dói, me coça tudo quando tenho que ficar meia hora parada.
Sou terrível terrível. Precisei de um professor para traduzir meditação para uma língua que eu conseguisse compreender
e de repente consegui apreciar todo aquele universo.
Já vou pro meu décimo-primeiro ano, aliás.
Por enquanto, nenhuma luz azul.
Janeiro no Sofá
No mês de janeiro, todas as edições do Sofá da Surina vão rolar em torno do tema Tradução. Nesta primeira semana escolhi traduzir meditação, esta palavra cheia de ideias e modismos, para uma linguagem que vem da minha experiência.
Semana que vem vou falar sobre Dharma e trazer um punhado de professores contemporâneos que eu amo porque traduzem os ensinamentos espirituais de um jeito que dá para entender.
Por fim, na última edição do mês, vou falar sobre um tema que acho muito interessante e sobre qual eu tenho contemplado muito ultimamente aqui nas minhas práticas – Inferno.
Notinhas
O Substack - plataforma que uso para esta newsletter - está na maior polêmica porque tem permitido a divulgação - e monetização - de conteúdos nazistas. Muita gente está discutindo e tentando pressionar por mudanças na política de moderação de textos de ódio. Quanto a mim, ainda não sei se continuo por aqui ou se procuro outra casa para o Sofá, mas venho acompanhando e discutido o tema junto com outras escritoras num grupo privado. Por enquanto vou observando da janela, mas estou atenta. Este texto aqui da Margaret Atwood fala um pouco do que tá rolando:
A viagem de bicicleta que fez tudo desmoronar virou meu primeiro livro. A versão física está esgotada, mas O mundo sem anéis está disponível em Kindle.
Ah! E que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
Oi Mari! Aqui é o Bruno (Unb, antropologia, "crientes" : ], idos de 2004-5?). Finalmente descobri o teu paradeiro. E é lindo! Estou passando um ano em "sabbatical" aqui em Toronto e querendo explorar a tal meditação (Covid, Bolsonaro e a vida em geral deixaram os ombros pesados nos últimos anos). Teu texto é bom demais. Beijão querida!
Já fui pro Vipassana, duas correntes budistas diferentes, 5 anos hare Krishna e a busca me cansou. Minha meditação são em coisas cotidianas e descartei a pretensão de viver iluminada.