Bem-vindx à Imperfeição. Neste mês de março, as edições do Sofá da Surina foram especialmente escritas em torno deste tema. Na primeira, publicada semana passada, evoco o espírito do Renato Russo e do Leonard Cohen para refletir sobre a ideia de sujeito perfeito. A edição de hoje é uma celebração dos nossos corpos como são, perfeitamente imperfeitos. Por fim, o próximo número do Sofá é um texto bem íntimo sobre como tive que encarar o terrível monstro da perfeição enquanto escrevia meu (próximo) livro.
Um veículo. Um templo.
O mais importante é a saúde.
Um cartão de visitas - a primeira impressão é a que fica.
Convite para qubrar limites.
Depositário provisório tanto dos sentidos quanto da alma.
Inimigo de quem deseja o fim dos
desejos.
Uma bênção, claro.
Ou a maldição dos que sofrem de medo de doença.
Testemunha definitiva da impermanência.
Passaporte para entrar no samsara.
Morreu, desencarnou.
Teve uma experiência-de-quase-morte.
O que é o corpo para você?
* * *
- Pra mim, um corpo é imperfeito quando tem uma barriga grande e redonda. Tipo uma bola saliente debaixo da camiseta - um sinal de que tem alguma coisa errada. Coisa de quem come porcaria, bebe demais. Talvez a pessoa não tenha aprendido a comer coisas saudáveis e por isso fica barriguda.
- E você acha que o seu corpo é imperfeito ou perfeito?
- Imperfeito, óbvio. Quer dizer, ele é perfeito pra mim agora. Mas eu bem que podia estar uns 20% mais magro.
(Lee, meu marido - que tem um corpo redondo e uma linda barriga)
- Corpo imperfeito... A primeira coisa que me vem na cabeça é uma ideia que muda. Por exemplo: nesse momento da minha vida, um corpo imperfeito é um corpo que dói. Ele é imperfeito quando o vejo em relação ao que já foi, embora seja perfeito em outras coisas. Ele funciona. Mas é um corpo que dói.
(J. Márcia)
Quando digo corpo imperfeito, penso no meu. É aquilo que vejo quando me comparo com o estereótipo da perfeição. Corpo imperfeito é aquele que não está de acordo com o estereótipo de corpo perfeito. Eu sei que não é verdade, que é uma ideia equivocada, mas você me perguntou do meu primeiro pensamento sobre imperfeição corporal, e o meu primeiro pensamento é este.
(I. Mercedes)
* * *
Participo deste mundo a partir de um agregado de carne, ossos e nervos que se concentra na diminuta distância de um metro e sessenta e dois centímetros que se estica da sola dos pés ao topo da cabeça. A maioria das minhas partes visíveis aos olhos alheios são grandes. De tão grossas, as pernas do meu eu adolescente que queria emagrecer não cabiam nas caneleiras da academia
gente, parece que você tem elefantíase
, diziam na escola.
Peitos pequenos e uma bunda redonda numa pessoa que passou a vida oscilando entre quase-magra e meio-gorda.
Nunca fui esguia.
Além disso, tenho um narizão e cabelos enrolados sobre os quais historicamente paira uma incontrolável revoada de frizz.
Nas festinhas da adolescência e começo da vida adulta, tudo que eu queria era a surpresa. A surpresa seria encontrar alguém muito interessante e passar a noite conversando sobre rockn’roll e filmes e outras coisas legais, por exemplo, mas confesso que nunca me aconteceu. Ninguém falava comigo porque homens interessantes que gostavam de rockn’ roll preferiam falar com mulheres bonitas e sempre havia mulheres mais bonitas, mais magras e de partes teoricamente mais proporcionais do que as minhas nestas festas onde eu gostava de ir.
Eu ficava no canto, entediada, pensando que era tudo mesmo uma tragédia, imaginando maquiagens dietas academias jeans cortes de cabelo e tudo que eu podia fazer para ser menos
feia.
Quanta, bobagem, meu Deus, quanto tempo perdido. Eu podia estar aprendendo violino ou carpintaria ou escrevendo meu primeiro livro de contos em vez de ficar perdendo horas preciosas ouvindo a minha voz ou as vozes alheias falando esse tanto de coisa estúpida.
Mas a vida é mesmo assim. Hoje em dia, olho as fotos e penso
Nossa, como eu era bonita.
É uma pena que eu não soubesse disso. Que eu era linda exatamente do jeito que eu era. Talvez a vida tivesse sido mais fácil.
Ou não.
Talvez não.
A centralidade desta ideia de um corpo perfeito inalcançável, pensando hoje em dia, é uma dessas que tive que encarar e que foi tão presente para mim que não sei quem eu seria se me achasse bonita na adolescência e ao longo dos vinte anos.
Não que eu fosse ou não fosse bonita. Isto é irrelevante.
Mas achar que a imagem no espelho era feia me fez buscar outras coisas que o passaporte da suposta beleza não entregou. Os livros, para voltar ao clichê, ou pessoas que se interessassem por outras partes de mim.
Junto com a falta de confiança e a rebeldia feminista, minha feiúra imaginada me deu de presente os livros. Sobretudo os livros.
Minha gata é pequena e elegante. Tem patas longas e parece uma esfinge.
Recentemente, uma amiga veio visitar e disse
sua gata é pequena demais, provavelmente teve um retardo de crescimento por conta de uma doença quando era filhote.
De gata perfeita ela de repente virou a gata desproporcional.
Lillipot, por outro lado
não deu atenção.
Não sei se entende a língua humana.
Continuou deitada, pequena e maravilhosa e confiante
no tapete vermelho da cozinha.
Feche os olhos agora e imagine o tanto de corpos que você poderia ocupar.
Você poderia ocupar o corpo de um vaga-lume, de uma coruja
você poderia ocupar o corpo de uma lacraia ou de um bicho do mar como o ouriço ou o caranguejo, ou o de uma baleia majestosa
você poderia ocupar o corpo da costela-de-adão que fica aqui na entrada de casa
ou o da minha gata minúscula e oficialmente desproporcional
você poderia ocupar o corpo da Kate Moss ou da Beyoncé
mas você ocupa o seu corpo, o seu pequeno corpo humano
cheio de terror e de avessos
: este corpo que lê agora, e que nunca mais lerá esta linha como se fosse a primeira vez.
Isso não é terrivelmente maravilhoso?
Quanto ao Corpo, este corpo mesmo que é o nosso invólucro, creio que ele desconhece qualquer ideia de perfeição. O corpo simplesmente existe, o corpo é inocente.
Meus gatos também são inocentes e lindos dentro dos seus corpos perfeitos imperfeitos.
Lillipot, minha gata bicolor diminuta, passa o dia com o irmão.
Haiku, o Grande Gato Cinza, não se importa com a minusculidade dela.
Ela, por sua vez, não dá a mínim para o fato de ele ser estrábico e praticamente cego.
Olho pela janela. Os dois estão brincando de subir na árvore. Chove e há rajadas de vento de oitenta quilômetros por hora, quero que eles entrem antes que saiam voando.
Haiku se assusta quando chego perto, tem medo de tudo. Era o mais doente da ninhada e só vê vultos.
Ela faz tudo rápido, com o corpinho minúsculo e ágil.
Ele é lindo de ver. Faz as mesmas coisas que ela, só que bem devagar e com cuidado.
Recomendações
Li muita coisa boa no mundo da Newsletter esta semana:
Este texto no qual o Cristiano Aguiar fala sobre como pegou carona num tapete voador para superar um bloqueio criativo de escrita
Na última edição da sua newsletter Cartas a possíveis amigos, Antônio Xerxenesky fala sobre as possíveis interpretações que fazem sobre o que escrevemos.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
me identifiquei muito. inclusive tenho uma gata adulta mui pequena tbm. e um outro todo rechonchudo. ambos perfeitos.
E o corpo pode tanto, né? Se a gte tivesse gasto tempo e espaço mental aproveitando disso, ao invés de sentir feiura ou desajuste, o corpo seria mais alegre hj. Mas... Sempre há tempo de reabitar. Um beijo