Bem-vindx à Imperfeição. Neste mês de março, as edições do Sofá da Surina foram especialmente escritas em torno deste tema. Na primeira, evoco o espírito do Renato Russo e do Leonard Cohen para refletir sobre a ideia de sujeito perfeito. A edição passada foi uma celebração dos nossos corpos como são, perfeitamente imperfeitos. Agora é a vez de trazer para vocês um texto bem íntimo sobre como encarei o terrível monstro da perfeição enquanto escrevia meu primeiro livro e o próximo, que será lançado em setembro deste ano.
Escrevi meu primeiro livro em nove meses. O segundo, com o mesmo número de páginas, demorou seis anos para ficar pronto.
Apesar do primeiro ter saído mais rápido, a verdade é que a escrita de ambos se encontra num ponto comum: nos dois casos, escrevi na companhia de uma senhora que se sentava na ponta da escrivaninha e ficava me olhando. Mesmo quando eu evitava olhá-la de volta, sabia que ela continuava lá, com um par de olhos enormes e uma voz irritante. Não acredito que você vai escrever este tipo de coisa.
Senhoras e senhores, quero apresentar-lhes a Madame Perfeição, uma senhora de roupas elegantes e discretas, perfeitamente alinhadas numa persistente silhueta ranzinza. Uma criatura cheia de ideias conservadoras e pouco criativas. Minha grande companheira de escrita.
Primeiro Livro
Justiça seja feita, talvez estejamos lidando com uma espécie de camaleão: a Perfeição que me acompanhou não parecia exatamente a mesma entidade na escrita dos dois livros. Tinha aspectos diferentes e variava também na intensidade da companhia.
Durante a escrita do primeiro ela esteve muito mais presente, mas em compensação eu não lhe dava tanta atenção quanto dei no segundo. É que O mundo sem anéis, meu primeiro, foi um livro despretensioso, uma narrativa de viagem sobre os três meses que passei viajando sozinha de bicicleta. Nunca esperei muito ou o vi com solenidade. Ele não precisava ser perfeito.
Olhando agora, sei que era um livro inocente, que aconteceu quase por acidente quando um grupo de escritores de Brasília me convidou para publicá-lo de forma independente junto com os livros que também lançariam naquele ano de 2015.
Quando escrevo, sempre imagino que tipo de pessoa estará do outro lado da página. No caso d’O mundo eu pensava, mesmo, que os únicos leitores seriam os amigos. Era para eles que eu escrevia. Hoje em dia é algo distante, mas naquela época as mudanças na minha vida eram uma grande novidade: eu tinha saído para pedalar quinze dias com uma amiga, ao fim destes quinze dias a amiga voltou para casa e eu decidi continuar. Sumi mesmo do mapa, ninguém sabia direito o que tinha acontecido comigo. Voltei três meses mais tarde de cabeça raspada, bronzeada e com um guru. Passados dez meses, larguei o doutorado prestigioso na Suíça. Todo mundo perguntava o que tinha rolado. Fiz o livro para contar a minha versão e dar fim a burburinhos.
Escrevi a maior parte na Alemanha, na casa dos pais do meu namorado de então, longe de todos. Por conta da Perfeição, escrevia muito pouco, uma página, meia página por dia. A meia página me custava umas doze horas na frente do computador. Riscava cada frase assim que digitava, editava cada capítulo loucamente. Não tinha ideia do que estava fazendo e logo no início entendi que minha percepção do tempo da viagem me impedia de escrever um enredo contínuo.
Foi uma grande descoberta. Bem ali no meio da piração de edições infinitas, comecei a enxergar os primeiros contornos da minha voz literária - era uma voz que encontrava porto na escrita fragmentária. Era assim que eu gostava de contar a história.
Faltava-me confiança na minha escrita, mas mesmo assim eu escrevia do jeito que dava. Eu escrevia sozinha-sozinha e às vezes me perguntava se estava escrevendo algo que valesse a pena ser lido. Até então eu tinha um blog, mas era diferente, o blog me parecia um lugar seguro, uma carta para mim mesma. O livro era outra coisa. Todo mundo teria acesso ao que estava dentro da minha cabeça e provavelmente descobriria que o que eu escrevia não valia nada, que a viagem não tinha sido assim, tão interessante. Por isso, então, eu passava muitas horas escrevendo cada página, cada capítulo tinha que estar perfeito, ninguém podia ver que o Dentro-De-Mim era um mundo cheio de breguices.
Era isso, principalmente, que a Perfeição me dizia enquanto escrevia O mundo sem anéis
: gente, que livro mais cafona, hein?
Segundo livro
A escrita do meu segundo livro veio com um certo peso.
Dentro das suas humildes proporções, O mundo sem anéis foi um sucesso. A primeira tiragem de 1000 cópias esgotou em dois anos sem que eu fizesse grandes ações de marketing. Leitores escreviam pedindo uma segunda edição, as avaliações na página da Amazon aumentavam.
Olha que interessante: a memória é um processo seletivo muito pouco fiel à realidade. De repente, tudo que tinha sido terrível enquanto eu escrevia o primeiro livro me aparecia como acerto. De repente, eu lembrava romanticamente de momentos na Alemanha com uma xícara de café latte na mão e o laptop na escrivaninha. De repente, certas passagens do primeiro livro me pareciam m a r a v i l h o s a s - e s p l ê n d i d a s. A mente dizia que eu tinha sido uma escritora inspirada contando da viagem de bicicleta, e que agora o meu elan criativo tinha se perdido para sempre.
Em outras palavras: o peso imaginário dos acertos passados me impedia de escrever um livro novo. A Perfeição vinha com uma nova cara, a de uma senhora congelada no tempo que adorava comparar, toda moderninha com uma mochila, que dizia assim
: ah, viagem de bicicleta todo mundo adora, eu sou demais, mas quem é que vai se interessar por um livro sobre meditar no ashram?
Ponto de partida
Sempre há um ponto de partida, e hoje vejo que as definições iniciais foram importantes para dar norte à escrita ao longo dos altos e baixos. Quando comecei a escrever meu segundo livro, em 2018, eu só sabia duas coisas: que teria 108 capítulos e que seria a história de uma mulher que larga a repartição pública em Brasília para viver num ashram.
108 é um número com grande carga símbólica para o budismo e para as tradições contemplativas indianas - é a quantidade de contas num rosário de preces (japa mala). O número me trouxe a estrutura: eu sabia que queria escrever um livro de cento e oito capítulos no qual cada um fosse curto e lembrasse uma espécie de prece. Além disso, queria que os capítulos fossem lidos do mesmo modo como fazemos a recitação das preces ou mantras, ou seja: apesar de cada prece ser individual, recitamos uma atrás da outra, num ritmo corrido. Desejava escrever capítulos que pudessem ser lidos no ritmo das recitações.
E aí tem as linhas gerais da história. 108 seria um romance autobiográfico no qual eu ficcionalizaria minha própria história, já que eu, também, pedi demissão do serviço público para viver num ashram. Mas desta vez, ao contrário d’O mundo sem anéis, eu não queria escrever uma narrativa biográfica ou um livro de memórias; queria escrever um romance, descolar a protagonista de mim, inventar outro ashram, outros ensinamentos, outras situações e personagens usando elementos da minha experiência pessoal como referência.
Faltava ainda inventar a história e escrever. Mas pelo menos havia um caminho.
Ziguezague
Fora o tema e a estrutura dos capítulos, o resto foi uma bagunça. Do princípio ao fim, o processo de escrita do 108 foi todo imperfeito, cheio de ziguezagues.
Para início de conversa, comecei a escrever o livro enquanto vivia full-time num monastério. Nem sabia mais como fazer, já tinha perdido o hábito da escrita, substituído pela vida monástica com suas disciplinas. Como é mesmo que a gente escreve?
Tentei resolver o problema tirando um mês de férias para fazer uma residência artística na Islândia. Queria dar um gás e voltar para o ashram com o livro escrito, mas tudo que consegui fazer naquele Dezembro de inverno sem sol foi aproveitar a cidade mais linda onde já estive. Não escrevi sequer um capítulo. Encontrei a Bjork tocando num bar alternativo, fui no show do Ólafur Arnalds e tomei um café na mesa ao lado da do Jonsi, vocalista do Sigur Rós.
Quando conseguia escrever, era um tiro no escuro. Não sabia onde estava caminhando, os textos saíam desconexos, distantes da história.
Naquela época o livro tinha o título provisório de Diário Espiritual dos Sentimentos Esquisitos. Alguns dos textos que escrevi durante a estadia na residência foram publicados numa revista literária islandesa lindíssima, a Ós Pressan. Mas nenhum deles foi aproveitado para o livro.
Em 2019 continuei tocando minha vida no ashram e encarando a frustração da página em branco. Quando saí do ashram, em junho de 2020, decidi que ia me dedicar integralmente à escrita do livro. Era pandemia, não havia voos para o Brasil nem obrigações à vista, e além disso eu estava muito leve depois de passar dois anos e meio meditando.
Em vez de terminar o livro, arranjei um marido. Exatamente um mês depois de sair do ashram, descolei um namorado e dois meses depois ele estava morando comigo.
Eu me sentava todos os dias horas e horas diante da página em branco, numa escrita errante sem nada para dizer. Isto é, quando conseguia escrever. Em geral, a escrita me vinha como uma punição. Onde está aquela alegria que eu tinha quando escrevia na infância?
Nas horas vagas, pintava. Veja bem, comecei a pintar aos 34 anos, por isso as aquarelas sempre me pareceram um passatempo. A literatura era minha forma séria de criação que eu queria transformar em carreira. Só que aos poucos as pessoas começaram a me procurar para comprar as pinturas.
Uma desconhecida da Bratislava encontrou meu trabalho no Instagram e encomendou cinco fine art prints. Estranhamente, assisti em tempo real o filme psicodélico do que viria a ser a minha vida - uma vida na qual eu era conhecida e construía uma nova carreira acidental como pintora, não como a escritora que eu planejava me tornar.
Escrever com outras pessoas
Devo o 108 às oficinas de escrita criativa das quais comecei a participar ao longo de 2020. Devo o livro, também, ao Sofá da Surina.
Em algum ponto do caminho, lá pelo fim de 2020, escrever o romance ficou tão difícil que só me sobrou uma opção: abandoná-lo completamente. Quando o abandonei, percebi que ainda estava viva a vontade de contar aquela história. Não era mais a história perfeita que eu fantasiava, mas a história do jeito como ia aparecendo, no tempo que precisava para acontecer.
Ao longo dos últimos quatro anos fiquei doente, melhorei, adotei gatos, construí uma casa, aprendi a cozinhar e comecei a procurar vestidos de noiva de segunda mão porque em junho vai rolar minha pequena cerimônia de casamento. Desenvolvi minha paleta de cores, participei de uma exposição na Índia, fiz um monte de retiros, encontrei professores budistas que sempre sonhei em encontrar e principalmente - principalmente, escrevi.
Escrevi todos os dias, até que escrever virou uma parte da existência feito uma verruga brotada do corpo. No meio da vida, em contato com ela, o livro foi acontecendo. As oficinas foram enraizando o livro no mundo - recebi feedback de outras alunas, de professores e leitores betas. Vi minhas colegas publicando, e cada um dos livros que elas publicavam era uma alegria tão grande como se fosse eu a terminar o projeto.
E o Sofá. Escrever todas as semanas. Planejar as novas edições. Escrever escrever escrever.
Acho que tenho um milhão de coisas para contar sobre o processo de escrita do 108, por isto esta é a edição mais longa que escrevi neste três anos de Sofá da Surina. Devo falar mais sobre este assunto ao longo do ano, mas por enquanto é isto: 108 provavelmente não é um livro perfeito como eu imaginava, mas é um livro muito mais perfeito porque é exatamente como eu nunca seria capaz de concebê-lo.
Escrever é uma aventura, por isto é tão maravilhosomente incomparável.
Lançamento em setembro em Brasília, Curitiba e São Paulo. Vou contando mais por aqui.
Recomendações
Enquanto preparo uma segunda edição, meu primeiro livro continua disponível em formato Kindle na Amazon.
Aí vai uma lista de livros de colegas que tive a chance de ver publicando ao longo destes anos. Vida longa à maravilhosa geração de escritoras brasileiras contemporâneas!
1+1=2/2-1=0, de Fernanda Caleffi Carbetta, vencedor do Prêmio Cepe de Literatura - uma história sobre abandono contado sob a forma de listas.
Café e Romance, da Denise Gals (editora Pedregulho) - para o qual eu tive o grande prazer de contribuir fazendo a ilustração da capa. A Denise está aqui no Substack com a Newsletter
Maneiras de temer o fim do mundo, o livro autobiográfico da Maria Alice Stock - ela também escreve a newsletter Lápis Lazuli aqui no Substack.
Baixo paraíso, da Isabella Andrade (publicado pela Diadorim Editora).
Toda-parte, o livro de contos da Elisabeth Ferroni, é uma meditação literária sobre o sentimento de pertencimento. Publicado pelo selo Aurora (editora Penalux).
A Casa do Posto, livro de contos da Larissa Campos publicado pelo selo Aurora (editora Penalux).
Mulheres fortes não ganham flores, da Tatiana Pastorello, publicado pelo selo Aurora (editora Penalux).
E o especial Cardumes de borboletas: quatro poetas brasileiras do século XIX (Círculo de Poemas), organizado pela Ana Rüsche e pela Lubi Prates, que nos traz poemas de grandes autoras brasileiras apagadas pela historiografia.
Notinha
O Sofá da Surina é uma newsletter que chega gratuitamente à sua caixa de correio nos três primeiros sábados de cada mês. Este é o nosso terceiro sábado de março, portanto as próximas duas semanas são tempo de descanso do Sofá. A gente se vê no dia 6 de abril, com uma editoria toda especial sobre o tema Retiro.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Tô eu aqui, com um arquivo de 27 textos, tudo já reeditado e revisado prontinho pra virar livro, só juntar a capa, registrar na BN e publicar na Amazon.
Mas vira e mexe a Sra. Perfeição encosta atrás do ombro e "Pô, não era melhor você reescrever tudo, mudar tudo pra primeira pessoa, falta uma linearidade aos textos" e o arquivo tá ali, guardadinho, pronto pra ser perdido numa queima de HD (aconteceu, por sorte tinha uma cópia no zap pq tinha enviado a um amigo).
Como faz pra mandar ela ficar quieta?
Estou no aguardo e mal posso esperar para te conhecer pessoalmente no lançamento, Surina. Já somos amigas :)
Depois fale um pouco sobre o seu projeto atual, quero saber da Lilipot (é esse o nome da gatinha?)