Ontem passei o dia no hospital. Foi um dia longo: acordei às 4 da manhã e fiz as minhas práticas no sofá porque sabia que não teria outro momento para visitar o nirvana.
Os três gatos me fizeram companhia. O mais velho se incomodou rápido e me trocou por um passeio no jardim.
Já o Lee levantou duas horas mais tarde e vestiu o roupão peludo azul-marinho. Fez café, panqueca de banana, preparou chá preto numa xícara térmica para levar na viagem, vamos, darling?, e foi guiando até a casa do nosso amigo que mora na vila a vinte minutos daqui.
As manhãs de inverno são bonitas no Alentejo. As nuvens tinham baixado do céu cor-de-rosa para mostrar de novo que este samsara é mesmo um sonho. Com meu marido no volante e o amigo de pernas compridas sentado no banco da frente, nosso carro Nissan Sunny ano 1993 rodou 250 quilômetros perfeitos pelas estradas da highway portuguesa, entre corticeiras e pés de medronho, até finalmente cruzar aquela ponte longuíssima sobre o Atlântico por onde se entra em Lisboa.
Nove e cinquenta e três.
Duas horas e quarenta e cinco minutos depois da nossa partida, descemos no portão do famoso IPO, o Instituto Português de Oncologia. O Lee sai correndo para estacionar o carro enquanto eu e o meu amigo respiramos fundo antes de cruzar a porta de vidro para a primeira bateria de consultas e exames clínicos que só terminará oito horas mais tarde.
Dizem que o IPO é um centro médico de excelência em Portugal. Parece que é difícil achar vaga para ser tratado aqui. Meu amigo só conseguiu quando alguém que fala português ligou para um dos fundadores e explicou que se tratava de um tumor estágio IV e que o paciente precisava de cuidados mais especializados do que o que estava recebendo no sul do país. Afinal de contas, se tratava de uma doença nos últimos estágios. Afinal de contas, meu amigo era jovem e tinha uma família. Afinal de contas, ele precisava do melhor atendimento possível para o tempo que ainda tem neste planeta.
Segurei as suas bolsas enquanto ele caminhou até a sala dos exames de sangue. Eram duas bolsas de algodão holandesas de boa qualidade com estampas moderninhas, bem coisa de artista. Dentro: cookies, suco, água, batatinha frita de pacote e uma garrafa térmica de chá de hortelã. Uma pasta de plástico com resultados de exames, relatórios médicos e cartão do hospital.
Saindo do laboratório de análises clínicas, meu amigo sentou ao meu lado na poltrona acolchoada. A recepção estava lotada de gente esperando, será que todo mundo aqui tem câncer? Pensei. Mas todo mundo parece tão normal… Pensei de novo, estupidamente.
Pensamento é mesmo uma coisa hedionda.
Dois enfermeiros atravessaram a sala com uma paciente careca e de olheiras deitada num leito. Uma moça de jaleco nos ofereceu café com leite e sanduíche de pão com queijo embrulhado numa embalagem de plástico. Os dois enfermeiros voltaram com a moça no leito; as mesmas olheiras. Devem ter ido fazer um exame. Comi meu sanduíche. Ele comeu o seu e despejou o saquinho de açúcar no copo de papel. Eu preferi o meu sem doce.
Não dá pra saber quanto tempo falta, nem quantas vezes a gente ainda vai se ver
, disse ninguém. Nem eu, nem ele. Mas ouvimos, tenho certeza que ouvimos o espírito do tempo anunciando a profecia da nossa amizade pelas paredes da recepção do hospital. Talvez os outros pacientes também tenham ouvido a mesma mensagem. Não dá pra saber quanto tempo falta, nem quantas vezes a gente ainda vai se ver.
Mas a gente está junto agora
, e isto foi o que eu respondi. Isto foi o que ele respondeu, também, e o espírito do tempo se deu por satisfeito. A recepção do hospital ficou submersa numa nuvem de paz. Era aquela mesma nuvem que baixou no céu cor-de-rosa para provar que o samsara é um sonho.
Mastiguei meu pão com queijo; ele tomou mais um gole de café no copo de papel.
A senha apitou às 11.30 e a porta automática que ficava atrás da moça de jaleco branco abriu. Tá na hora. Levantamos. Carregando suas duas bolsas e a minha. Foi uma cena bonita, acho, para o os que estavam ali: de mãos dadas, desaparecemos juntos no túnel que levava ao gabinete de neuro-oncologia.
O Lee assumiu depois do almoço enquanto corri para fazer um eletrocardiograma em outro hospital. Dentro de uma semana sou eu que vou deitar num leito de hospital para fazer uma cirurgia.
Voltei ao IPO a tempo de sentar com meu amigo na ala de tratamento quimioterápico, última parte dos nossos afazeres do dia:
- Você teve medo de tomar anestesia geral quando abriram a sua cabeça para tirar o tumor?
-Nada, Suri. Nem dá pra sentir. Quando acordar da sua cirurgia você já vai estar no quarto com a barriga cheia de ponto. É de boa.
Já era noite quando a gente voltou para o Alentejo no nosso Nissan Sunny 1993, Lee no volante, ele no banco do passageiro. As corticeiras continuavam `na beira da estrada, mas já não dava mais pra ver porque tinha escurecido.
Vou sentir a sua falta, xuxu.
Ele disse que também ia. Mas a gente nunca sabe, talvez eu morra antes que você na minha cirurgia, semana que vem. Pode ser, querida, mas é uma cirurgia simples, vai dar tudo certo. Ele respondeu.
Pode ser.
Ontem foi uma das noites mais frias do ano. Achei que ia ser um dia terrivelmente triste, mas não foi como eu imaginava. Há muitos fenômenos que pertencem à ordem do inexplicável, como ontem. Aquilo que é muito triste toca naquilo que é muito bonito e o que veio do encontro foi o Sublime, não o terrível.
A gente não sabe de nada, mesmo.
O dia hoje amanheceu claro, sem nuvens nem céu cor-de-rosa. Acordei com muita saudade do meu amigo, mesmo sabendo que ele continua aqui. Então escrevi-lhe uma mensagem. O Lee fez café. Coloquei Novos Bahianos para tocar. Depois plantei um pé de limão e desci para o atelier sozinha, com uma xícara de chá.
Notinhas
-A partir de fevereiro o Sofá da Surina volta a ser semanal, três vezes por mês. Foi legal tentar a periodicidade quinzenal (o experimento durou só um mês!), mas senti falta de estar aqui mais vezes... Então é isso: a gente se encontra de novo no dia 1 de fevereiro.
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Recomendação da semana
Este texto maravilhoso que eu gostaria de ter escrito, na verdade:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Vivi parte dos últimos anos em hospitais oncológicos, entre cirurgias e tratamentos. O meu diagnóstico foi de câncer estágio IIIB… algo como o último pedacinho de chão antes do abismo. Estou em remissão do câncer e acrescentaria duas coisas ao que você disse. Uma é que a gente nunca acha que essas coisas vão acontecer com a gente. E a outra é que agora vivo plenamente todos os dias da minha estada por aqui! A gente se permite perder tempo precioso…
Beijo com carinho
Tenho pensado tanto sobre finitude agora que estou no Brasil encarando a velhice do meu pai. Penso em quantas vezes eu ainda o verei e me convenço que devo voltar pro Brasil para aproveitar esse tempo que resta. Mas continuo voando pro outro lado do mundo. Querida Surina daqui eu mando um abraço apertado e todo meu amor pra você. ♥️