Ando pensando muito sobre o valor estético das coisas do espírito.
Se você quer destruir a reputação de uma obra criativa, um jeito é dizer que se trata de uma obra espiritual ou de inspiração espiritual. Se disser isto, existe a probabilidade de que ela seja removida da categoria de criação humana complexa para ser identificada como uma coisa new age/autoajuda/não presta.
Entendo este tipo de esvaziamento. Entendo de verdade.
É que no universo das obras espirituais a gente encontra de tudo, incluiindo livros em tom professoral ou que querem dar ensinamentos. Livros que pregam, livros que tentam muito convencer; livros que arrebentam o singelo fio das nuances para construir uma casa sólida de paredes grossas e impenetráveis onde habita a Grande Verdade defendida pelo autor.
Nesta categoria encontramos, ainda, aqueles livros que falam das coisas do espírito nos devolvendo um pastiche de fábulas para conquistar pessoas e ter abundância, numa posição que serve mais ao samsara do que à transcendência. Fórmulas para viver melhor, com mais conforto e ganhando bastante dinheiro, de preferência.
Estas obras existem, claro que existem. Mas há muito mais do que isto.
É difícil escrever sobre este tema.
Não cresci entre religiões e só sou batizada porque mamãe contraiu malária durante uma transfusão de sangue no meu parto. Aos quinze dias, fui entregue à madrinha. Mamãe tentava sobreviver, tudo era incerto. A madrinha aceitou me criar desde que se cumprisse uma condição: eu deveria ser submergida nas águas sagradas do batismo católico.
Mamãe não morreu naquela época, felizmente. Pouco tempo depois, fui devolvida aos meus pais, que trataram de me submergir rapidamente em águas bem diferentes.
Aos três anos de idade, eu deitava na rede da sala ouvindo a voz do papai me ninar com histórias da mitologia grega.
Fui criada entre Afrodites, Atlas, Hércules. Nunca recebi ensinamentos religiosos em casa. Meu corpo foi submerso nos rios cristalinos da mente erudita da classe média que existia no nosso país, e sou muito, muito agradecida aos meu pais por terem me dado a chance de conhecer o mundo através do olhar inteligente de escritores e artistas brilhantes. Aos quinze, tinha lido a maior parte da obra machadiana, meia dúzia de russos, Dickens, Graciliano, um pouquinho de Balzac, a poesia do João Cabral de Mello Neto, os heterônimos do Pessoa. Em casa, ouvíamos Caetano e música clássica.
Então acontece que aos 33 eu conheci um guru totalmente por acaso e fiquei sem entender nada.
Foi uma experiência esquisita e desconcertante que não passava pelo registro conhecido da mente racional. Não dava para encontrar o sentido daquilo nas minhas referências. Assim que me sentei com o homem, senti que os ossos derretiam e que eu me tornava uma geleca. Incompreensível, aquilo me assustava. Um prazer sem espinha dorsal, mas um prazer imenso mesmo assim.
Havia algo especial que me fazia voltar a ele. Estar na presença daquele sujeito me dava uma sensação de benevolência infinita, de expansão sem limites. O que, exatamente, era aquilo que eu sentia?
Pensei anos sobre esta pergunta.
Um dia tive um insight. Encontrei a descrição precisa do que me acontecia na presença do guru: quando estava diante dele, era como se toda a beleza existente no universo houvesse sido restituída ao nosso planeta.
Entendi, então, algo muito importante sobre mim. Entendi, então, algo que talvez seja uma das coisas mais fundamentais da minha existência neste corpo.
Entendi que a apreciação estética do mundo é algo que o meu coração reconhece como sagrado.
O encontro com aquele guru teve um efeito sobre a minha prática de escrita. Passei a reconhecer em outros artistas a presença de uma pequena veia do sublime, uma espécie de devoção ao invisível.
Reconheci, também, que esta adoração no campo da arte não se traduz necessariamente em obras boazinhas ou sem complexidade. É outra coisa, difícil de explicar.
Você já ouviu algum disco do Sigur Rós ou do Olafur Arnalds?
Por exemplo: o e.e.cummings – meu poeta preferido – é cristão. Ele é autor de poemas muito especiais, incluindo este daqui, super espiritual:
i thank You God for this most amazing
day:for the leaping greenly spirits of trees
and a blue true dream of sky;and for everything
which is natural which is infinite which is yes
A Patti Smith escreveu um livro que toca o equilíbrio entre o sagrado e o estético. O título revela imediatamente o conteúdo espiritual- Devotions.
O Lou Reed, do Velvet Underground – sim, o autor da feroz música Heroin, dedicada à droga que ele amava tanto -, era abertamente budista e inclusive faz um pedaço da locução de Brilliant Moon, documentário sobre a vida do lama tibetano Dilgo Khyentse Rinpoche.
E tem também o Leonard Cohen e sua angustiante busca pelo sentido da vida no caminho oscilante entre budismo e judaísmo. Considero que a mistura entre erotismo e espiritualidade no trabalho musical do Cohen é uma das coisas mais bonitas e originais do fim do século passado/começo do nosso século. Quero te convidar a folhear o maravilhoso The book of longing, cheio de poemas, auto-retratos e nus femininos que ele desenhou na época de monge budista num monastério zen californiano.
Ainda tem mais, muito mais gente, Allen Ginzberg, Gary Snyder, Natalie Goldberg, Mary Oliver… e Água Viva, da Clarice Lispector.
Ando pensando nisto porque meu querido e recém-lançando livro 108 perpassa o horizonte das buscas espirituais. É um livro ao qual faltam grandes ensinamentos e sobram perdas, incompletude e principalmente aquele desejo de uma protagonista que deseja se livrar do sofrimento.
Nos últimos tempos, ando pensando muito sobre o valor estético das coisas do espírito. O 108 é um romance breve que teve um percurso de escrita longo. Nos seis anos que demorei para criá-lo, esse povo aí de cima me fez companhia - Cohen, Lou Reed, Gary Snyder, e.e. cummings…
É tão bonito o que os livros que a gente escreve fazem por nós, autores. O 108 me ajudou a sair do armário e a construir uma ponte juntando dois territórios que me habitam: o da arte e o do espírito. Pensando agora, acho que sempre tive medo de lançá-lo. Tive medo que fosse alçado à categoria das coisas espirituais estúpidas, desmnerecido e me arrastasse consigo.
Quanta bobagem. Ainda bem que o 108 saiu, porque negar a presença desses dois territórios seria negar quem sou. Ando pensando muito sobre o valor estético das coisas do espírito, só que agora encontrei esta ponte, e é uma ponte que diz sim.
Agenda de lançamentos do 108 - começa hoje em Curitiba!
CURITIBA - 14 de setembro (sábado), às 10.30 na Livraria Arte e Letra. Bate-papo com a tradutora e jornalista Mariana Sanchez.
FLORIANÓPOLIS - 18 de setembro (quarta), às 19h na Livraria Latinas. Bate-papo com Aline Assumpção, jornalista e designer editorial.
BRASÍLIA - 28 de setembro (sábado), às 17h na Circulares Livros. Bate-papo com Julliany Mucury, doutora em letras pela UnB.
SÃO PAULO - 03 de outubro (quinta), às 18hs na Livraria Na Nuvem.
Enquanto isso, você pode continuar comprando os livros por aqui, ó:
Surina Responde
Obrigada por terem enviado perguntas aleatórias! Adorei e queria comentar todas, de verdade.
Na semana que vem, a edição do Sofá da Surina vai ser dedicada a responder algumas delas <3
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre,
Tem uma palavra em sânscrito que uma das suas muitas traduções é “sensação de sentimento estético” — rasa. Mas tb é algo como seiva da vida e sabor. É importante para manutenção da vida sentir a beleza. É pra eles, é isso que é espiritual.
Adorei. Esse sofá está especial.