Até hoje escrevi dois livros inteiros. O primeiro tem o título de O mundo sem anéis, a primeira edição foi publicada no fim de 2015 e é um diário de viagem contando a história dos meus cem dias viajando sozinha de bicicleta, principalmente pela Espanha.
O segundo, “108”, é um romance de vernizes autobiográficos narrado por uma personagem que vive em Brasília e larga a repartição pública para viver num ashram de meditação na Europa.
Em poucas linhas, 108 é a história da minha vida aos 30 anos, só que não. Embora a narrativa tenha como substância minhas experiências pessoais, escrevi como um romance. Ficcionalizei o vivido e criei personagens que não existiram, recriando um ashram imaginário e aventuras que vivi só dentro de mim. O romance está pronto, mas ainda não chegou aos olhos do mundo - será lançado em setembro no Brasil.
Gosto muito do 108, meu querido livro novo, apesar de também reconhecer suas limitações. Demorei seis anos para escrevê-lo e foi meu projeto mais difícil até hoje. Um texto dolorido não sei exatamente por quê.
Acho que nunca falei sobre isso, mas recentemente compreendi que o tema principal deste livro é a renúncia, um assunto muito caro pra mim e um eixo fundamental do budismo. Descobri, aliás, que renúncia é o coração dos meus livros: escrevo histórias sobre pessoas que deixam para trás uma vida convencional, quebram a ordem e vão em busca de algo transcendente.
O livro da viagem de bicicleta tem um enredo assim. O 108, também. O romance que estou escrevendo atualmente continua na mesma linha. Tenho impressão que estou escrevendo perpetuamente o mesmo livro, de novo de novo de novo de novo, tipo o Murakami - um dos meus autores preferidos, aliás.
Talvez isso um dia mude. Não sei. Por enquanto, continuo escrevendo.
Como vocês podem ver, nossas vontades mais profundas são insuprimíveis e, como Freud já dizia, o recalcado volta. Tenho um desejo não realizado de ser monja e este desejo espirra em tudo, por isso invento personagens de mim mesma que deixam tudo para trás para tentar encontrar o sentido da vida fazendo buscas espirituais sem pé nem cabeça.
Meu primeiro livro foi lançado no susto, de forma independente, e foi um sucesso inesperado. A primeira tiragem de 1000 exemplares esgotou em dois anos sem muito marketing e até hoje fico impressionada quando volto para a página da Amazon e descubro que tenho mais de duzentas avaliações de leitores do Kindle.
Enquanto terminava o manuscrito do segundo livro, tive muita vontade que fosse publicado por uma editora. Fiz bastante esforço, pesquisei as que tinham um catálogo no qual o 108 se encaixaria, mandei emails para Deus e o mundo, tentei tudo que dava mas não tive grandes resultados. Grande parte das editoras não respondeu, outras responderam negativavmente sem sequer ler o documento de uma folha com a proposta de publicação.
Fiquei com raiva mas passou rápido. Fiquei imaginando aquele milhão de mensagens chegando na caixa dos editores que nunca viram a minha fuça e, no fim das contas, estão fazendo um trabalho hercúleo publicando este maravilhoso objeto livro apesar de todas as dificuldades que existem no mercado brasileiro.
Sou do tipo melancólico com corpo gelado; quando a raiva passa, logo se transforma em tristeza. As negativas e as faltas de resposta tiveram um efeito. Em algum momento fiquei mesmo triste, aquela pilha de nãos só podia ser um testemunho da minha incontornável falta de talento; achei que o 108 e tudo o que escrevo era uma grande merda e afinal de contas quem estaria interessado?
Passei um ano nessa vibe. Como a tristeza não passava, peguei uma mochila e saí caminhando sozinha.
Caminhei 35 dias até chegar em Santiago de Compostela. A estrada era tão dura que já no primeiro dia tinha esquecido do problema da publicação. Tudo parecia pequeno; linda mesmo era a
estrada e todas as coisas que ela continha, bichos, carros, paisagem, montanha, chuva, cansaço, minha mente, Eu. O problema do livro só voltou à consciência bem no final da viagem, quando eu já tinha chegado na Galícia. A resposta veio inocente, o coração intuitivo fala numa voz que é tudo menos forçada. Algo assim
ah, mas você mesma pode publicar o seu livro, não tem problema
Achei aquilo bonito e não questionei. Claro que eu poderia publicar meu livro, como fiz com o primeiro. Mas a resposta era algo maior do que uma forma de fazer a publicação, era algo cheio de ternura, uma autorização interna, tudo bem, você passou esse livro para um monte de leitores betas e para dois escritores que você respeita. Então – tá esperando o quê?
Sempre fui muito feliz de ter lançado o meu primeiro livro de forma independente. Pude escrever exatamente o texto que desejava, sem preocupações de ordem comercial, e imprimir com um projeto visual que conversava com o coração do texto. A primeira edição d’O mundo sem anéis é muito simples mas custou três vezes mais caro porque é todo atravessada de ilustrações coloridas. Tenho muito orgulho de dizer que meu primeiro livro é lindo.
Por que escrevemos? Por que desejamos ser publicados? O que está por trás de tudo isso?
Nos últimos dias da minha caminhada para Santiago, um vulto de resposta se insinuou. Era hora de publicar o 108, era hora de dar fechamento àquele projeto interminável. Era hora. Outros projetos viriam, a vida seguia adiante, outros problemas e propostas de publicação apareceriam, sem dúvida, mas acima de tudo era preciso comunicar aos leitores a escrita que até então se fazia no silêncio da escrivaninha.
Por que escrevemos? Por que desejamos ser publicados? O que está por trás de tudo isso?
Tenho uma frase preferida do meu primeiro livro. É uma frase na qual explico as razões por que decidi fazer uma viagem interminável de bicicleta em meio a uma depressão. Uma década depois, continuo gostando dela, ainda é a minha preferida e acho que serve para resumir a teimosia de autores e editoras que continuam escrevendo e publicando:
: as vezes, quando não existe solução, a única coisa a fazer é contornar.
Recomendações e notinhas
-A Ana Rusche está com inscrições abertas para um intensivão de escrita de 1 a 15 de julho. Bora? Eu vou estar por lá, tentando avançar no manuscrito do meu próximo romance… Inscrições por aqui.
-No dia 20 de julho, a Fabi Guimarães vai dar o curso Como escrever e publicar um romance contemporâneo? Inscrições por aqui.
-Este texto do Thiago:
-O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, três vezes por mês. Sábado que vem é dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 6 de julho.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Surina querida, amo seu primeiro livro e estou animadíssima para ler o próximo 🌻
Sabe, também me autopibliquei e, apesar de saber todos os lados positivos de uma editora, acredito que em muitos casos, a autopublicação pode ser mais vantajosa. E tenho certeza de que o 108 vai caminhar ainda mais longe e encantar leitores por aí!
E fiquei com vontade de recomendar um livro que li e amei muito. Chama "Eu posso estar errado", do Björn Natthiko. Acho que ele não seguiu a mesma linhagem que você segue, mas é uma leitura linda, intensa, e talvez converse com este seu desejo (ainda?) não realizado de ser monja.
Beijos
Contando os dias para o lançamento! E que lúcido esse texto, te abraço muito. Sorte nossa que vc insiste em contar essas histórias 🌟✨