Escrevo devagar hoje porque não me ocorre o que contar.
Começo descrevendo o que está mais próximo de mim: este temporal que observo através da janela. O barulho das rajadas de vento misturadas com a chuva faz a sala parecer ainda mais quente, um gato cinza na cama, a outra (bicolor) no sofá
o fogo aceso, uma xícara de chá de erva-doce
nada de muito especial para dizer
: é isso.
A edição de hoje é sobre viver sem centro.
Alguns humanos padecem do mal do centramento. Sou um deles. A partir de um momento da vida, acho que ainda criança, comecei a ouvir essa frase com frequência
Nossa, você é tão centrada
Vinha como elogio, então interpretei que ser centrada era virtude. Os anos foram passando, escolhi estar perto de pessoas parecidas comigo. No círculo de amigos, dei preferências aos sólidos - e centrados – em vez do pessoal mais tranquilo e sem direção certa.
Tive namorados indecisos e cambaleantes, mas quando foi para morar junto escolhi a apoteose do centramento. Meu marido largou a escola aos quinze para passar os dias na frente de uma loja de cds porque gostava de música e sabia desde muito cedo que o que queria, mesmo, era ser engenheiro de som.
Ele trabalha na mesma carreira há vinte e cinco anos.
Temos 8 caixas de som e um subwoofer numa casa de menos de 40 metros quadrados.
Gosto muito de ser quem sou e estou certa de que me sentiria estranha dentro do corpo de outra pessoa.
Às vezes, entretanto, canso de ser centrada e desejo me estilhaçar em duzentas ou estender braços muito compridos capazes de encostar com os dedos a neve no Canadá.
A gente pode tentar de tudo, mas o samsara nunca será perfeito porque a própria ideia de perfeito implica totalidade. Aliás, onde quero chegar com este enunciado grandioso?
O que quero dizer com isto é que ser centrada é ótimo porém imperfeito, já que deixa de fora as as possibilidades maravilhosas do descentramento, este lugar cheio de uma charmosa e malemolente frouxidão.
(Aliás, que palavra linda. Frouxidão frouxidão frouxidão).
Fevereiro é um tempo bom para tentar coisas novas. Aqui no hemisfério norte não tem carnaval, chove, é frio, o ano novo está quase inteiro diante de nós com onze meses de esperança. Neste fevereiro que é sempre tão curto, posso experimentar algo diferente, como por exemplo parar de fechar as frestas e deixar entrar em mim as goteiras de alguém que eu não acho que sou
ou
parar de alimentar imagens de quem eu acho que sempre
fui.
Dei a essa tentativa o nome de viver sem centro, muito embora seja um nome grandioso (de novo) para algo que começa, então, com afrouxar.
Pergunto-me o que significa, exatamente, não ter centro.
Uma estrela passa a vida dando calor e brilho para um dia colapsar em si mesma e encolher até virar um ponto infinitesimal, absolutamente minúsculo no cosmos gelado. Este ponto tem o nome de singularidade e no perímetro que o circunda – o horizonte de eventos -, a gravidade é tamanha que tudo que passa perto é engolido.
O buraco negro é um ser muito centrado.
O universo onde o buraco negro existe, por outro lado, é um espaço tão amplo que os cientistas consideram que pode ser mesmo infinito. Mas infinito ou não, o que sabemos é que o universo não tem centro e que está se expandindo.
Dentro do universo cabem entidades sorumbáticas como o buraco negro narcisista, os cometas que atravessam o nosso céu e um punhado de estrelas, sem contar os planetas, as nuvens de gases, as luas, os anéis planetários, as diferentes formas de atmosfera, a poeira cósmica e mais um monte de outros seres.
Quando penso em viver sem centro, penso em ser mais universo do que buraco negro.
Meu viver sem centro depende de, mas é diferente de abrir espaço na vida. Meu viver sem centro tem a ver com afrouxar o centro gravitacional e entregar-me à imensidão.
Não sei como descrever exatamente, a não ser desta maneira. Centramento demais pode asfixiar a qualidade poética da existência. Como falei na edição passada do Sofá, ando com muita saudade de caminhar nesta capa de gelo fina e frágil que se chama vida sem os aparatos de segurança da produtividade interminável.
No mês de fevereiro, continuo trabalhando etc mas troquei algumas obrigações auto-impostas & bullet points por uma agenda aberta na qual só cabem coisas inúteis como: 1) tomar sucos; 2) testar todas as minhas tintas para fazer uma biblioteca pessoal de cores; 3) ler.
Soltar o corpo na água
ao meio-dia
senti-lo boiar.
Aonde mesmo é que eu estou indo?
Não sei, mas a água é boa.
Notinhas
Ler: neste fevereiro, gostei muito de “1+1=2 2-1=0”, da Fernanda Caleffi Barbetta e agora estou mergulhada no Apague a luz se for chorar, primeiro livro da Fabiane Guimarães. Podemos estar em tempos difíceis, mas é maravilhoso estar viva hoje em dia para assistir a cena das escritoras brasileiras contemporâneas. O próximo da lista é o segundo livro da Fabi.
Por falar em livro, recebi as primeiras páginas diagramadas do meu novo romance, 108, enquanto terminava esta Newsletter. É um texto muito cuidado que demorou seis anos para ser escrito. O projeto visual está ficando lindo, as ilustrações que fiz pra ele têm uma estética zen que acompanha o projeto visual e conversa com o enredo - a história de uma mulher que deixa a segurança do emprego público para viver num ashram. Lançamento este ano por volta de setembro/outubro em Curitiba, São Paulo e Brasília. Vou avisando por aqui!
Admiro muito a Aline Valek, ainda mais depois deste último texto maravilhoso que ela nos escreveu. Obrigada, Aline <3
Fevereiro no Sofá
Entramos 2024 numa vibe antiprodutivista. No mês de fevereiro, todas as edições do Sofá da Surina vão acontecer em torno no tema Nada. Na primeira semana escolhi falei sobre Espaço para não esquecer do campo aberto e livre que existe por trás de todo entulho material e psíquico que tenho o hábito de acumular. Nesta, temos este texto sobre Viver sem centro e por fim, na última edição do mês, vou falar sobre um tema esquisito a que dei o título de A onipresença do invisível.
O Sofá é enviado todos os sábados, mas a última edicão e a de hoje saíram com atraso. em março a rotina volta por aqui.
Let this day bless you
Today, let this light bless you
With these friends let it bless you
With snow-scent and lavender bless you
Let the vow of this day keep itself wildly and wholly
Spoken and silent, surprise you inside your ears
Sleeping and waking, unfold itself inside your eyes
Let its fierceness and tenderness hold you
Let its vastness be undisguised in all your days
*Deixo vocês com o trecho final de A blessing for wedding da Jane Hirshfield, uma poeta que estou descobrindo aos poucos. Viu? Viver sem centro é um multiverso cheio de descobertas imprevisíveis, inclusive escritoras maravilhosas - elas estão em todas as partes, elas não acabam nunca.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
arriscaria o descentramento com uma cordinha de segurança para voltar ao centro se precisar. mas fica a dúvida: descentramento com algum controle é descentramento ou só a borda de uma vida centrada?
sobre os livros da fabiane, ambos valem muito a pena!
Descentrar é poder estar mais à beira, é saborear o não saber tudo sempre. Mais dúvidas do que certezas, se dobrar como um bambu. Seu texto foi um lembrete pro meu processo. Um beijo, suri