Antes de sermos um casal, meu marido fez um jejum de 40 dias tomando só água.
Isso aconteceu no verão de 2019. Naquela época nós dois morávamos no mesmo ashram, fazia um calor de 40 graus aqui no sul de Portugal e de vez em quando eu o via sentado em algum banco sozinho. Ele ficava lá na maior solidão, sem a companhia de uma xícara de chá sequer, sem um chocolate ou uma fruta. Pensando bem, é estranho ver alguém sozinho por muito tempo num lugar público sem um snackzinho. Tudo que ele tinha era uma garrafa de água e o próprio corpo, que largava de qualquer jeito no encosto porque a coluna jejuante não dava conta do peso.
Eu tinha minhas tarefas diárias como residente do ashram e assistente no departamento de eventos. Subia, descia, corria para o refeitório, terminava uma reunião e ele sentado até a hora em que eu não o via mais. O homem que não comia era tipo um fantasma que aparece, fica um tempo sem incomodar ninguém e depois vira vapor.
No começo do jejum, meu agora marido saía de manhã para passear de bicicleta. Aquilo me parecia o uó - pedalar sem nada na barriga. Seu ciclismo à base de nada durou umas duas semanas (lembro bem porque já gostava dele), mas o jejum prolongado o forçou a mudar de rotina e a bike foi para a garagem.
Às vezes nos cruzávamos quando o levavam de volta para o quarto, no fim do dia, num desses carrinhos de golfe. Depois da segunda semana ele parou de caminhar e passou a depender dos outros para se mover pelo ashram. Não que se movesse muito. Ia pouco ao banheiro, só para fazer xixi. Sem comida não há digestão.
Vai ficar 40 dias sem comer, me contavam, foi recomendação de um médico ayurvédico.
O ashram virou tipo o Big Brother do Lee, será que ele tá bem? Dizem que não saiu da cama ontem. Você viu que ele está irradiando uma luz de dentro? É purificação
, esses tipos de comentário.
Todos tinham uma interpretação.
A cada dia que passava ele diminuía um pouco mais. Se eu ficava quatro dias sem vê-lo, no quinto me custava reconhecer quem era. Seu corpo se transformava; não só mais magro, o semblante também ia virando uma coisa diferente, um par de olhos pendurados num rosto que não conseguia fixar a atenção nos objetos do mundo. O jejum se alongando e os olhos do Lee se perdendo na direção de quem olha para tudo e não olha para nada.
Durante o jejum era raro encontrá-lo com alguém. Pensando bem, todos os dias que o vi naqueles dias ele estava sozinho. Antes de cortar a comida, o Lee sempre tinha sido o engenheiro de som barrigudo que ficava no fundo da sala de ensinamentos por trás dos mixers e telas. Era famoso por adorar a vida e suas delícias, especialmente frango e carne de porco e otras cositas más. Ele era aquele que estava sempre na área de fumantes com uma caneca estampada de coração, um chapéu com pena de faisão e um moletom de gorro tipo rapper.
De uma hora para outra, virou um cara esquelético, meio yogi, uma espécie de santo indiano com tênis de skatista.
Depois de terminar o jejum, o Lee foi trabalhar em Londres por uns meses e perdemos contato. Foi o fim do Big Brother e eu fiquei sem saber o final da saga. Quando começamos a namorar, um ano mais tarde, pedi que me contasse em primeira mão todos os detalhes.
Ficar sem comer era bom, ele dizia, eu não precisava mais dormir, passava a noite acordado olhando receitas de hambúrguer no celular. No final da primeira semana a fome tinha passado. Apesar de não comer, ele sentia uma energia imensa, o corpo leve.
-Você ficava cansado? Não dava mesmo para andar?
-Pra te dizer a verdade, andar até que eu conseguia. Só não caminhava porque achava melhor não abusar. Mas tinha uma coisa que me cansava mais que exercício físico, uma coisa que me cansava e era insuportável. Quando fiz jejum, descobri a coisa que mais cansa o ser humano, e a coisa que mais cansa o ser humano é
falar.
O primeiro retiro que fiz na vida foi em 2013 e durou dez dias. Participei online antes de retiro online ser uma prática comum.
Tudo aconteceu no meio de uma longa viagem de bicicleta. Estava de passagem por uma vila minúscula quando alguém me contou que ia rolar um retiro de meditação. Achei interessante; decidi experimentar sem saber que aquele sim inocente ia mudar o curso da minha vida para sempre.
Acampei no jardim de uma casa linda na Andaluzia onde os outros participantes online tinham montado um telão para assistir as sessões de ensinamento. Era um jardim inglês daquele tipo que tem muita grama, folhagens elegantemente dispostas e algumas árvores frutíferas de galhos perfeitamente podados. Tudo muito civilizado. Havia um lago com sapos, também.
Montei minha barraca embaixo de uma figueira. Ao fim do retiro, quando finalmente conheci a meia dúzia de participantes, descobri que a casa tinha sido residência do falecido escritor britânico Robert Graves – o filho dele, que continuava morando lá, já estava próximo dos noventa anos e emprestava a sala grande para quem queria praticar meditação.
Comprei tudo o que precisava comer na semana de reclusão: pão, azeite de oliva, tomate, queijo. Acordava cedo, tomava café da manhã e em seguida ia para a primeira sessão do retiro. A sessão acabava à uma da tarde, aí eu almoçava, lavava a louça no tanque, saía para caminhar ou descansava na barraca até às sete, quando começava a segunda sessão.
Além de mim, outras pessoas assistiam o retiro no telão montado no casarão inglês. Não nos cumprimentávamos nem falávamos uns com os outros. A gente nem se olhava, na verdade, porque tínhamos recebido instruções de restringir qualquer tipo de comunicação. E na época eu só tinha um celular Nokia, que desliguei durante a temporada de ensinamentos.
Fui muito, muito estrita com meu silêncio naquela minha primeira experiência. Durante o tempo que durou o retiro, proferi uma única frase
um café com leite, por favor
num dia em que saí para caminhar pela vila no intervalo da tarde.
Sentada no terraço com meu pingado, fiz a única coisa que era possível naquelas circunstâncias: observei o que se abria à minha frente. Eu estava tão quieta que o mundo inteiro parecia calado. Vi os dois balanços vazios do parquinho se movendo com o vento, numa dança alternada. Um par de caminhões atravessou a rua, um deles parou. Um homem saiu de dentro e descarregou dezenas de caixas grandes no supermercado, entrou na cabine e foi embora.
O mundo funcionava perfeitamente sem mim.
Algumas pessoas relatam a experiência de sair do corpo e verem a si mesmas do teto. Naquele café, passei por algo parecido. Minha experiência foi assim
: durante quarenta minutos, me desprendi do corpo do mundo e vi a realidade da existência de longe.
A realidade era um lugar tão parado quanto eu. Meu corpo e a xícara de café com leite, absolutamente imóveis. As coisas se moviam, mas era só uma impressão superficial.
Tentei tirar dinheiro do caixa automático, mas no meio da operação descobri que já não fazia a menor ideia de qual era a minha senha, então desisti.
Quando o retiro acabou, custou-me muito voltar a falar. Senti pena, descobri que era bom manter a boca fechada, mas em algum momento o mundo se impôs e eu enunciei a primeira frase, a segunda, e em uma semana tudo tinha voltado ao normal outra vez.
Fiz muitos outros retiros depois daquele, mas mas não tenho memórias sobre o silêncio.
Além daqueles nos quais fui participante, também servi em mais de uma dúzia de retiros nos quais a instrução dada para a equipe era a de manter o que se convencionou chamar silêncio prático. Ou seja: conversa era só para organização, mudanças de horário, mensagens no celular, decisões que precisavam ser tomadas, compras de última hora, resolver filas do banheiro ou problemas de áudio nas traduções simultâneas.
O último retiro do qual participei como parte da equipe organizadora, em 2020, foi em Rishikesh, no começo de 2020. Silêncio prático. Mais ou menos 1500 pessoas vinham todos os dias receber ensinamentos. Aí a pandemia começou a rolar e tivemos que adiantar nosso regresso ao continente europeu antes das fronteiras fecharem e os voo serem cancelados.
Quando voltei da Índia no último vôo da Turkish para Portugal, eu e a equipe que organizou o retiro chegamos a um aeroporto deserto. Todos nós vivíamos no ashram. Não havia ninguém pousando ou decolando em Lisboa - talvez, quem sabe, um último voo como o nosso vindo de algum lugar distante, talvez um voo de repatriação, mas em geral os corredores estavam desertos e eu me sentia numa cena pós-apocalíptica. Nossa equipe de mais ou menos 70 pessoas retornou intacta, ninguém tinha sinais de COVID, e logo à saída do aeroporto dois ônibus fretados nos esperavam. Voltamos ao ashram e ficamos isolados numa área sem contato com os outros residentes por duas semanas a fim de protegê-los do possível vírus que talvez tivéssemos contraído na viagem.
Era o começo da pandemia e ninguém sabia direito como funcionava a doença. Nossas duas semanas foram um retiro forçado. Ali, sozinhos, observávamos uns aos outros para ver se alguma tosse ou febre aparecia. Os outros residentes nos visitavam, mascarados, três vezes por dia em carrinhos de golfe carregados de tupperwares individuais com nossos nomes. Por duas semanas eles nos prepararam as três refeições e lavaram nossa louça. Era bonito ver o quanto eles se importavam conosco; volta e meia aparecia um chocolate, uma carta, uma florzinha. Deixavam comida, chá, café instantâneo, água quente, água gelada, frutas, e a gente
comia
tentando entender a nova realidade do mundo através das notícias que apareciam na tela dos telefones. Um amigo está na UTI na Inglaterra, parece que o coronavírus pode atacar os pulmões
, lembro alguém dizer
a doença não mata apenas idosos.
Era o desconhecido. Sem planejar, meu corpo reagiu fazendo silêncio. Durante aqueles quinze dias, falei muito pouco. Substituí as as conversas por rascunhos no meu caderninho de desenhos. O silêncio ia fazendo seu trabalho, trazendo entendimentos que as palavras não alcançavam porque nenhuma era capaz de explicar o desconhecido. Falar o que?
Foi uma sensação boa e nova. Olho para aquele tempo e penso que meu remédio foi deixar a vida acontecer sem intromissões. Nada a fazer.
Na paz avessa daquele tempo, o caderninho encheu. Olhando agora, tantos anos depois, descubro que os rascunhos que fiz naqueles dias eram incrivelmente bons. O silêncio não é sinônimo de morte; algo estava vivo, algo que precisava fechar-se em si para entender o que se passava.
O silêncio é assim. Não é estéril. O silêncio tem uma fertilidade.
Pode ser curto, mas às vezes, um tempo depois, pode virar um monte de coisas interessantes que você não esperava.
Notinha & Recomendações
“Completa”, a ilustração que abre essa newsletter é uma das obras que eu realizei a partir do meu caderninho de rascunhos silenciosos.
O grande silêncio (2005, Die große Stille) é um documentário filmado pelo diretor alemão Philip Gröning dentro do monastério principal da ordem dos cartuxos, na França - uma das ordens cristãs contemplativas mais ascéticas do mundo. O título é perfeito, aliás. Este é um dos meus filmes preferidos, uma experiência sensorial sobre o silêncio.
Abril no Sofá
No mês de abril, as edições do Sofá da Surina foram especialmente escritas em torno do tema Retiro. A edição desta semana é um apanhado de relatos sobre a prática do silêncio. Semana passada fiz uma homenagem à solidão. Semana que vem vai ser a vez de trazer vocês para dentro da sala de ensinamentos e falar um pouco sobre objetos e pequenos rituais dentro de um retiro formal.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima
como cantaria Björk: shhhh shhhhh
<3
fique até com dó de usar a palavra para comentar 😽