Há mais ou menos um mês, abri um formulário especial nesta edição aqui do Sofá. Era um formulário de perguntas que criei porque queria descobrir se os leitores tinham vontade de me perguntar algo.
A gente nunca sabe.
O formulário deu certo. Para minha surpresa, recebi algumas perguntas.
Havia perguntas pessoais (a maioria) e outras sobre temas gerais. Havia, ainda, perguntas sobre escrita.
Achei muito bonito encontrá-las. As perguntas foram uma janela interdimensional que se abriu no tempo-espaço, eu me lancei naquela fresta e por um momento vivi a ilusão de que estava atravessando o universo todo para chegar ao outro lado da
página
e encontrar quem me lê neste Sofá.
No meio do adoecimento que a comunicação contemporânea maluca nos trouxe, há alguns milagres que a escrita de internet opera. Um deles é este portal entre quem escreve e quem lê.
Foi difícil pescar uma. No fim, escolhi uma pergunta impessoal para responder.
Querida Surina, qual a relação entre silêncio, ouvir e escrever?
Querida leitora,
A resposta é que não sei. Nunca me perguntei isto desse jeito. Será que os três têm relação? Certamente terão - possivelmente uma relação que varia de pessoa para pessoa.
Comecei a responder a sua pergunta item por item, e então lembrei de uma história que mistura as três partes. Silêncio, ouvir e escrever. Apaguei tudo que tinha escrito e resolvi contar a história.
Achei que seria a melhor resposta para te oferecer. Espero que você goste.
Silêncio, ouvir, escrever
Em 2019, fiz um curso de escrita criativa num instituto de sabedoria budista tradicional no norte da Índia. O Deer Park fica na pequenina cidade de Bir, região dos Himalaias, num prédio que no passado foi um monastério budista.
O instituto herdou toda a estrutura do monastério, incluindo o templo com uma estátua dourada, enorme, do Buda. As aulas do curso aconteciam num salão onde antes os monges faziam suas práticas e recebiam ensinamentos.
Em vez de cadeira e escrivaninha, a gente sentava em almofadinhas com uma mini mesa na frente. O professor, também.
Foi meu primeiro curso de escrita. Durava uma semana, manhã e tarde, e eu não tinha qualquer idea do que esperar. Aliás, o que pensar de um curso de escrita com pessoas que falavam línguas diferentes? Éramos 25. Uma brasileira, alguns indianos, uma canadense, uma mexicana, o resto eu não lembro.
O professor chegou atrasado no primeiro dia e explicou que o curso teria apenas uma única regra: ninguém comentava o texto de ninguém.
Então era assim: recebíamos um exercício, escrevíamos, depois cada um de nós ia para a frente da sala e lia para todos os outros o que escreveu. Ninguém comentava.
De uma certa forma, aquele curso foi um exercício continuado que combinava os elementos que você mencionou: silêncio, ouvir e escrever.
De todas as partes, a mais difícil pra mim foi ouvir. Todas as vezes que alguém ia ler lá na frente da sala, minha vontade era sair correndo e poupar meus lindos ouvidinhos de ter que aguentar texto ruim.
Minha capacidade de escuta era comparável à de uma parede. Veja bem: antes mesmo que os meus colegas começassem a ler, eu já achava - mais do que isso, tinha certeza - que o texto seria ruim.
Aí a pessoa começava e bum: em vez de ouvir o que estava rolando, tudo que eu queria era que a leitura terminasse. Eu fazia o que gente sempre faz - deixava os olhos abertos, fixos na pessoa que estava lendo, enquanto minha mente percorria planetas longínquos e mergulhava na lista de compras, nas coisas que eu poderia estar escrevendo, no que eu queria comer aquele dia.
O professor nos trazia de volta. Vocês estão ouvindo?
Às vezes ele colocava um disco do Bob Dylan e dava ensinamentos budistas entre um exercício e outro.
E se os textos fossem ruins? E se fossem bons? Aliás: importava?
Tudo que eu precisava fazer era ouvir. Mais nada. Durante meia hora do dia, tudo o que me pediam era que eu ouvisse.
Ao longo da semana. a minha capacidade de escuta melhorou. Nada como o hábito. De tanto ter que escutar, aprendi a ouvir melhor. Ouvia e observava os julgamentos que me ocorriam enquanto eu ouvia. Era uma espécie de meditação ativa. A pessoa lia o texto, eu ficava julgando o quão horrível o texto era. Aí eu percebia o que estava rolando e quase na mesma hora dirigia minha atenção ao texto que estava sendo lido pelo colega.
Quer dizer: eu deixava os julgamentos de lado - exatamente como a gente faz na meditação. A mente relaxava, aberta só para a escuta. Aí vinha uma calma. Uma falta de ruído, um
silêncio.
Quanto menos atenção eu prestava aos julgamentos internos que me vinham sobre o texto alheio, mais eu me abria ao que estava acontecendo ali de verdade.
No começo do curso, eu pensava que se ouvisse assim, tão aberta, perderia minha capacidade crítica. Qualquer coisa presta, é isso que o professor desse curso quer que a gente exercite?
No começo daquela semana eu achava que ouvir me faria perder a capacidade de saber se um texto era ruim ou bom, por isso eu me fechava. Acho que sempre nesta vida eu me fechei. Ao longo da semana, descobri algo novo: ouvir e suspender o julgamento me ajudava a perceber o que era bom e o que precisava ser melhorado no texto do outro. Ouvir aguçava minha percepção, em vez de anulá-la, e então a mágica: ao suspender o julgamento sobre os textos dos outros, descobri que estava suspendendo o lugamento sobre os meus
textos, também.
É que esta fronteira entre o eu e o outro é um mistério. Dizem os budistas que, de um certo ângulo, ela nunca existiu.
Suspendendo julgamentos, comecei a me dar certas liberdades.
Minha escrita mudou radicalmente a partir dali, e acho que até hoje estou tentando completar internamente o ciclo do que comecei a aprender naquela sala meio escura no meio dos Himalaias.
Querida leitora, a sua pergunta continua sendo a minha. Qual relação entre silêncio, ouvir e escrever?
Notinhas e recomendações
Gostei muito de fazer esta primeira edição do Surina Responde. Pretendo continuar fazendo edições assim, abrir o formulário de novo e responder outras perguntas que já vieram. O que vocês acharam? Me conta por comentário ou respondendo por email. Adoraria saber a opinião de vocês.
Na semana da Flip, conheci uma autora enquanto comia um sanduíche. Me chamou atenção o nome dela - Gisele Mirabai -, porque Mirabai é uma santa muito conhecida nas tradições contemplativas védicas. O livro dela, Machamba, foi vencedor do primeiro Prêmio Kindle - em 2017 - e é bom demais. Está disponível aqui.
Na última semana li algumas newsletters muito boas:
Além de escrever o Sofá da Surina, sou autora de dois livros lindos. Você pode conhecer e comprar o 108 e O mundo sem anéis aqui (entregas para todo o Brasil).
… ou, se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
O Sofá da Surina é uma Newsletter semanal que chega até você três vezes por mês. Sábado que vem é dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia de Finados, 2 de novembro.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Surina, que maravilha esta sua experiência de "escuta forçada"!! Não é má ideia replicar um curso com esta característica... Ajudaria muita gente a se desatolar dos pântanos do ego!! rsrsrsrs
Oi Surina, gostei muito dessa edição. Concordo com a Bruna que gosto de ler sabendo mais sobre quem escreve, portanto se assim quiser, continue com essas edições:)
Aliás, sempre quis comentar isso, mas acabava esquecendo toda vez: eu adoro a última frase de todas as suas edições. Termino de ler com um quentinho no coração…desejo que você seja também muito feliz, sempre! Um beijo!