“Quando dizemos ‘eu tomo refúgio no Buda’, precisamos também entender que ‘o Buda toma refúgio em mim’. Sem a segunda parte do enunciado, a primeira permanece incompleta”. (Thich Nhat Hanh, “On Being Peace”)
Olá, tudo bem com vocês?
Semana passada uma nuvem desceu do céu e pousou no vale misturando sonho e realidade às seis e meia da manhã. Daqui, alto do morro, mal consegui distinguir o laranja dos telhados. Era meu primeiro dia acordando sozinha no meio do mato. Lá embaixo, as casas da vila de São Martinho das Amoreiras não eram nada além de uma mancha etérea, e a pergunta veio:
será que os moradores de São Martinho têm consciência que estão afogados no meio de uma nebulosa?
Talvez não, incrivelmente metidos que estão dentro da invisível cortina de vapor de água. Eu, por outro lado, via a imensidão em volta de mim nitidamente. Tudo é uma questão de ponto de vista. Da minha casa nova, enxerguei o moinho no alto da colina, as montanhas além e até Garvão, que fica a uns 8km daqui. Tomei um gole de café com leite e apertei a faixa do roupão na cintura para sentir algum tipo de solidez.
O que você procura já é o lugar de onde você olha. É uma das frases que meu professor mais gosta de usar. O mundo que você enxerga do lado de fora dos seus olhos é só uma projeção do mundo que acontece por trás dos seus globos oculares.
Sempre desejei entender este enunciado de que o mundo não tem existência autônoma a não ser através dos meus filtros. É um enunciado radical, porque nele não há Eu & o Mundo. A realidade, diz meu professor, É o que eu vejo.
No fim da tarde desci ao meu atelier, uma cabaninha de madeira que fica no jardim. Atravessando pela grama, notei já de longe que algo faltava. Será que rolou lá pra baixo com o vento? A estátua na frente da janela principal não estava lá. Uma de gesso, sem muitos adornos, que ganhei de uma amiga que ganhou de outra amiga que voltou ao Brasil e não tinha onde deixar.
Dei a volta no atelier e notei que do lado de fora ainda, nas prateleiras externas da varanda, todos os itens respondiam presente: bule, potinhos de chá, o vaso turquesa, tudo, tudo menos, do lado direito da estante, a outra estátura pequena de um homem sentado com pedacinhos de espelho brilhante.
Presente da mesma amiga da amiga. Conferi de novo; não faltava mais nada. Os produtos de pintura estavam lá, a chave escondida, escritório intacto, nenhum item ausente. A única coisa que levaram daqui, do meu atelier localizado no meio do mato em São Martinho das Amoreiras
: a única que levaram do meu terreno novo foram dois Budas. Um grande, outro menor.
Contei a história para três amigos. Mas quem é que rouba um Buda?
, eles queriam saber.
o que você procura já é o lugar de onde você olha
Pelo menos é carma bom para o ladrão, foi meu primeiro pensamento. Dizem que a simples chance de olhar o Buda já é um presente porque deposita na consciência de quem vê a imagem de uma libertação possível diante do sofrimento: pelo menos o ladrão levou o darma pra perto, vai dar aquela olhadinha para o Buda quando chegar em casa. Quem sabe?, o ladrão se ilumina, volta aqui pra agradecer e me traz um presente maior, vira meu professor, saímos dançando felizes para sempre pelos campos de São Martinho.
- Porra nenhuma, coitado do ladrão. É carma ruim pra caralho, darling, roubar o Buda de outra pessoa, respondeu meu marido enquanto pesquisava no celular câmeras de segurança para instalar na varanda.
-Foi um bêbado, dona Surina, certeza. Passou aí com pinga na cabeça, achou diferente, podia valer alguma coisa, levou o Buda embora. Foi só o Buda mesmo?, é a opinião do mestre de obras que trabalha aqui na nossa construção. O servente de pedreiro, por outro lado, tem outras tendências:
-Agora não dá pra deixar mais nada fora de casa. É gente de tudo quanto é país aqui, o povo rouba mesmo. E ainda por cima com essa guerra é gente passando fome. O negócio tá mal, qualquer um euro já ajuda pra quem tá passando fome.
Houve ainda o amigo holandês que opina com grandes certeza. Pensa, minha querida. Pensa. Só existe uma resposta. O povo aqui é muito católico. Você acha que se fosse uma estátua da Virgem Maria alguém ia roubar? E a menina com inclinações místicas, o universo te diz que o Buda externo não é mais necessário; a hora chegou de encontrar o Buda dentro de você.
Ainda acho que alguém achou os Budas bonitos e levou as estátuas para casa. É um ponto de vista ingênuo, eu sei, mas é o que tenho para hoje. Só isso.
... um exercício de escrita...
Me conta: o que você acha que aconteceu com os Budas?
Coloque o alarme para 5 minutos e se deixe levar para sua história. Como foi o furto? Quem era a pessoa? Quero saber a idade dela, como se vestia. O que ela pensava quando passou aqui na frente? Depois me conta:
Um poema para os objetos que nos deixam
Por enquanto não sou o homem das lonjuras
então, rendo graças a esses objetos
que agora me deixam
a colher de pau quebrada ao meio
a panela de barro rachada, vazando sobre
o fogo;
a mochila que devolvo ao tião, esgarçada
tudo isso
transforma-se
no livro
que não é
me livro
Rollo de Resende (1965-1995), poema publicado nesta edição da Revista Mallamargens.
Notinhas de fim
O Sofá da Surina completou um ano e meio. É uma alegria saber que consegui escrever (quase) todo mês, e a novidade é que ele agora vai ser quinzenal. Escrevendo mais posso dividir com você textos longos e pequenos, insights, uma coisa qualquer aqui, outra ali, porque afinal de contas o Sofá veio para ser um inventário das coisas mágicas e o meu catálogo de encantamentos está muito grande para caber numa única edição mensal.
A citação que abre esta Newsletter é uma tradução livre de um trecho do livro On Being Peace, escrito pelo monge zen vietnamita Thich Nhat Hahn (1926-2022). Os livros de Thay - como é carinhosamente conhecido - você pode encontrar aqui. A versão original da citação é esta:
“When we say, ‘I take refuge in the Buddha’, we should also understand that “the Buddha takes refuge in me me", because without the second part the first is not complete”.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima
Acho que os budas encontraram com duendes e foram caminhar juntos e felizes pelo mato.
Adorei a edição e me fez lembrar de um artigo roubado.
Minha avó morreu tem quase 10 anos e as plantas que ela tinha foram algumas para minhas tias, minha mãe e outras morreram. Um dia visitei um tia, ela tinha um cacto que era da vó, ela arrancou um pedaço dele e me deu. Era um cacto redondo, que vai crescendo bolas um em cima do outro, com espinhos esparsos e grossos.
Plantei o cacto, ele cresceu e tudo ia bem. Um dia fui viajar, e junto com as minhas outras plantas, ele ficava na área da minha kitnet. Quando voltei, ele tinha sumido. Só ele. Justamente o cacto da minha avó. O que restará dela, depois de quase 10 anos. Espero que os espinhos tenham espetado a mão do ladrão e que tenha infeccionado :)
beijoooos
Su, quando soube um lado aqui de tras dos olhos achou o mesmo que você...este Ser sempre quiz ter um Buda!ou será que Buda quiz it com ele?
O outro achou que poderia se sentir incomodado por não ser do seu credo, mas o lado pensou também: " teria então quebrado para manifestar"...e sempre tem as gentes que acham que as outras gentes de fora fazem errado...e assim seguimos...e agora escrevendo meu cuore diz que foi apenas isto, nada mais a se preocupa...