Vi o post no Instagram. Sob uma imagem amarela, a legenda anunciava: quanto mais o mundo adoece, mais imperioso se torna que cada um de nós encontre um centro interno, calmo e firme, para atravessar o vendaval. O post terminava com esta afirmativa
uma outra visão é possível
, e esta foi uma afirmativa que exerceu sobre mim um imenso poder.
Algumas coisas a gente não sabe que precisa até que alguém lhes dê forma. É certo que eu precisava, eu precisava
muito
que alguém enunciasse - uma outra visão é possível.
Fico feliz que a Márcia Baja tenha feito isto por mim.
Passei, em seguida, ao exercício de adivinhar como uma outra visão seria.
Recentemente, li no The Guardian um artigo no qual a Rebecca Solnit defende a importância das narrativas diante do aquecimento do planeta. A ensaísta americana afirma que a imaginação sobre outras possibilidades de futuro são muito importantes, já que nos devolvem a possibilidade de olhar para o mundo com algum tipo de lucidez. “Para fazer o que a crise climática exige de nós, temos de encontrar histórias de um futuro habitável, histórias de poder popular, histórias que motivem as pessoas a fazerem o que for necessário para construir o mundo que precisamos.”
Isso, claro, não tem nada a ver com tapar o sol com a peneira fingindo que está tudo bem.
Para mim, isso aponta mais para os efeitos humanos do desespero. A falta de uma visão possível face a um mundo que adoece é fonte de destruição. Ao contrário do que se poderia supor, o desespero não é necessariamente um motor para a ação.
Às vezes, a sensação de que já estamos derrotados é o que nos faz desistir, como se agir não fizesse diferença nenhuma.
Uma outra visão é possível.
Que outra visão é essa?
Meus familiares viviam me pedindo indicação de livro, até que um dia pararam. Você só gosta de livro triste, foram confessando, um a um.
Pensando bem, é mesmo verdade. Gosto de livros tristíssimos.
A literatura é o lugar das histórias e viver realmente têm algo de trágico. Ou será que não é bem a literatura, e sim a literatura que eu gosto de ler?
Mas a literatura (ou aquilo, nela, que gosto de ler) tem um triste diferente.
Sempre que amo muito, sinto um pouco de dor. Agora, por exemplo: estou passando três meses longe de casa. Se olho as fotos dos meus gatos tomando sol no quintal, sinto um aperto. E se eles morrerem antes que possamos nos reencontrar? E se eu morrer antes do nosso reencontro?
Quando meu marido me conheceu, ele me disse algo lindo:
I love you so much that it hurts.
But it is good pain.
Amar muito tem algo que dói e a literatura que eu gosto sabe disso.
Acabei de ler Never let me go, o romance tristíssimo do Kazuo Ishiguro publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Entrou para a lista dos meus livros preferidos - uma narrativa cheia de sutilezas que acontece numa sociedade distópica onde pessoas de uma classe subalterna são fabricadas com a única tarefa de doar órgãos para outras.
O livro vai ficando terrivelmente triste à medida que se aproxima do final. Deitada no apartamento da Pati e submersa na fumacinha benevolente do umidificador durante o auge da temporada de seca em Brasília, não consegui parar de ler. Terminei o Never let me go há três dias, mas a história continua presente em mim aqui em São Paulo. Assim como o título - Não me abandone jamais -, o livro não me deixa. Terminei, e desde então estou numa espécie de estado de graça.
Existem muitas historinhas que terminam com foram felizes para sempre. Tudo dá certo, mas hiostórias desta natureza não me deixam assim. É que um fim de conto de fadas põe uma solução definitiva para tudo, estabilizando o futuro no lugar do imutável.
O Never let me go, por outro lado, me levou a um lugar sublime que é, também - e de certa forma, paradoxalmente - humano e real. Existe, então, uma dimensão feita de carne e osso, impermanente, bagunçada e
sublime, exatatamente por isso: por ser imperfeita e frágil, como nós.
O livro do Kazuo Ishiguro oferece uma resposta aberta. O fim é povoado por uma melancolia espaçosa o suficiente para guardar dentro de si toda a ternura que existe neste mundo.
Estou misturando tudo. Tristeza, literatura, histórias. Estas ideias me ocorrem enquanto tento dar sentido para aquele post que me trouxe grande confiança na afirmação de que uma nova visão é, sim, possível.
Como escritora, estou interessada em histórias. Estou interessada numa nova visão, sinto alegria por acreditar de novo que ela é possível; desejo descobrir e contar histórias sobre isto. Acho que esta edição do Sofá deve estar estranha, porque se localiza na dimensão do intangível. Provavelmente seja o estado de graça a que o livro do Kazuo Ishiguro me lançou.
Não sei explicar por que. Mas acho que uma nova visão possível é um pouco como a literatura e o meu marido - eles aceitam a realidade da tristeza sem deixar de sentir
amor.
Notinhas
Este mês o Sofá da Surina começa com este texto sobre tristeza e amor. Na semana que vem, será a vez de uma edição leve com o título de Surina Responde, com respostas a perguntas que vocês enviaram pra mim no mês passado. Finalmente, na última edição de outubro, abro a caixa de pandora numa edição íntima sobre leitura na qual vou revelar os meus hábitos pouco ortodoxos que nunca contei pra ninguém.
Além de escrever o Sofá da Surina, sou autora de dois livros lindos. Você pode conhecer e comprar o 108 e O mundo sem anéis aqui (entregas para todo o Brasil).
… ou, se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
A Isabella Andrade - escritora talentosa que publicou recentemente Baixo Paraíso, escreveu uma edição linda da newsletter falando sobre o 108 e o lançamento que rolou em São Paulo na última quinta:
Por falar em newsletter, li edições bem bonitas nas últimas semanas:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
novas visões são sempre possíveis. e kazuo ishiguro é fantástico. dele, o meu preferido é "o gigante enterrado". que livro!
É isso. Minha pesquisa vai muito sobre isso. Lindo texto! 🌿