#82. Universal pessoal
Natalie Goldberg faz o mundo caber dentro de um prato de sopa de galinha
Toda vez que leio um livro da Natalie Goldberg sou transportada para um lugar onde quero ficar por muito tempo. É um país brutal e delicado, uma esquina triste preenchida de pequenas epifanias como um sanduíche de ovo que contém toda a ancestralidade de sua ascendência judaica.
Tenho a impressão de que Natalie e eu nos conhecemos intimamente. Sei do que ela mais gosta – caminhadas longas e poesia japonesa antiga (haikus), pinturas coloridas e canja. Do interior de São Martinho das Amoreiras, trinta e dois anos mais jovem que ela, vivo dilemas semelhantes tentando atravessar o samsarão e ao mesmo tempo acompanhar os ensinamentos de um professor espiritual vivo. Somos parecidas num monte de coisa, Natalie.
Recentemente li no Substack o post de uma escritora brasileira contemporânea que respeito muito. No post, ela confessava estar cansada da pilha de newsletters autobiográficas nas quais o centro do universo é o umbigo da autora/autor.
Foi um comentário sensato e corajoso que me pegou. Também fico cansada quando tenho que encarar esse tipo de texto. E eu? Será que estou no mesmo barco dos escritores egocêntricos chatos?
Fiz uma rápida faxina interior e constatei o óbvio: adoro livros autobiográficos e alguns dos meus autores preferidos escrevem a partir de si mesmos. Por que, então, alguns textos e livros pessoais quase me matam de tédio enquanto outros agarram minha atenção com tanta vontade?
Aí lembrei da Natalie Goldberg.
A Natalie tem uma história bonita. Ela ficou famosa de uma hora para outra quando publicou, em 1986, uma obra que se transformou num manual clássico de escrita criativa. Write Down the Bones é um livro singelo de capítulos curtos no qual a autora dá dicas de escrita partindo da sua experiência no zen.
O manual virou best-seller, vendeu mais de um milhão de cópias e foi traduzido em doze línguas. Natalie continuou publicando. A maior parte das pessoas a conhece pelo Write down the bones e seus desdobramentos em outros manuais de escrita, mas a autora tem uma lista relativamente extensa de títulos publicados na qual apenas um é ficção – Banana Road, que ainda não li.
Mais que tudo, a Natalie escreve relatos autobiográficos. Ela já escreveu um livro de memórias sobre sua trajetória idílica de escrita e prática espiritual com o mestre zen Katagiri Roshi e, uma década mais tarde, um outro de ares revisionistas falando sobre seus dilemas ao descobrir que Roshi tinha romances extraconjugais com estudantes do zen-do. Natalie tem um livro sobre seu linfoma, dignosticado na mesma época que sua companheira descobriu um câncer de mama. E em 2021, pandemia, lança o imperdível Three simple lines, contando a história dos quatro principais autores japoneses de haicai enquanto nos leva na bagagem numa de suas viagens pelo Japão.
Gosto de todos os livros da Natalie. Pergunto-me por que, exatamente, tenho essa atração tremenda por eles. Fiz-me esta pergunta no começo da semana e deixei que dormisse em mim durante a noite.
Duas manhãs depois, acordei com algumas respostas.
Gosto dos livros da Natalie porque eles são cruelmente pessoais. Natalie não tem a intenção deliberada de tecer um ensaio sofisticado sobre o tempo presente a partir da sua biografia - sua intenção é usar a escrita como uma prática espiritual, ou seja, entrar em contato com a própria mente. O resultado do desejo de aproximar-se de si mesma é uma narrativa crua e tangível. Acho que é por isso que me reconheço nela. Ao falar honestamente de si, ela fala também das esquinas ocultas da minha própria mente.
Outra coisa que me atrai nos textos da Natalie é a imperfeição. Não sei se é a palavra certa, mas é a única que consigo encontrar agora. O que quero apontar, aqui, tem a ver com método de escrita: a Natalie escreve em fluxo, sem editar nem tirar a caneta do papel. Só mais tarde, na edição, é que vai organizar o texto. Ao criar a primeira versão num fluxo contínuo, ela dá espaço para que as ideias surjam no papel na ordem e do modo como aparecem na sua cabeça: naquele zigzag que nós, humanos pensantes, conhecemos bem. Seus livros, então, têm um ritmo muito peculiar no qual os fios da história vão e vêm de um jeito orgânico. É um texto que soa menos redondo/fabricado - um texto que eu acho delicioso, próximo do nosso processo mental. É bem escrito e pouco convencional, mas nunca pretensioso. E eu adoro isso.
Por último, tem essa coisa do incompreensível: eu simplesmente gosto de ouvir a voz literária da Natalie falando comigo através das páginas. Gosto de ser apresentada a este planeta através dela. O mundo inteiro cabe dentro do mundo da Natalie: a sua formação judaica no prato de canja de galinha que é receita de família, a contracultura dos anos 60 e 70 nos Estados Unidos enquanto ela vaga entre professores zen e hippies reunidos em torno do lama tibetano Chogyam Trungpa, o relevo dramático e quente do New Mexico da janela do carro - um lugar do mundo onde nunca estive mas que já virou meu.
O debate sobre escrita autobiográfica está na ordem do dia e eu sou honestamente muito ruim quando o negócio é acenar opiniões gerais. Não é falsa modéstia: sou terrível mesmo. Outras pessoas fazem isto melhor; ainda bem que elas existem.
O que sei é que gosto muito de histórias autobiográficas. Quando são bem escritas, elas fazem por mim o oposto do narcisismo autocentrado: me catapultam para o espaço sideral de um jeito sedutor. A intimidade vira roupa de astronauta. Segura e protegida, sinto-me pronta para visitar o universo.
Universo Natalie
Infelizmente os livros biográficos da Natalie ainda não foram publicados no Brasil. Se você lê inglês, dá uma olhadinha nos títulos no site pessoal da escritora.
Notinhas e recomendações
-—Alguns livros autobiográficos que eu adoro: Só garotos (Patti Smith, título original Only kids), Fora do lugar (Edward Said), A resistência (Julián Fuks), A invenção da solidão e Da mão para a boca (ambos do Paulo Auster), Do que eu falo quando falo de corrida (Haruki Murakami), Memórias de uma vida interrompida (Suleika Jaouad).
-Este texto da Clara Averbuck no qual ela fala de si mesma para falar de Porto Alegre:
-Editoria: no mês de julho vamos falar de temas bem variados. Na primeira semana escrevi sobre meu vestido de noiva & rituais de passagem. Nesta segunda edição consegui realizar o desejo antigo de escrever sobre a Natalie e sua habilidade de falar do o mundo enquanto escreve obras profundamente autobiográficas. Na última edição do mês vou de um texto bem pessoal sobre intimidade & solidão.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Sabe que o notes que você comentou também me pegou... e você resumiu muito bem. Há textos pessoais universais e textos pessoais pessoais. E é, inclusive, um bom termômetro para o "publico ou não". Não conhecia a Natalie, mas vou buscar os livros imediatamente! Hehe
Esse texto encaixou muito bem com o meu momento, Surina! Vou olhar com carinho todas as suas indicações, também gosto muito de ler textos autobiográficos e pelo fato de também escrevê-los, o post que você comentou me levou à “faxina interna” que você trouxe nesse texto. Não posso dizer que cheguei a alguma conclusão, mas a reflexão foi válida para confirmar o que gosto de ler e de escrever.
Concordo também com o comentário aqui acima do meu, que diz que gosta de textos vivos, independentemente do gênero - autobiográfico ou não, quero ler histórias que me trazem reflexões, me levam para um outro espaço, me fazem questionar o meu status-quo e por aí vai…
É um prazer te ler sempre! Faz tempo que estou para te escrever um e-mail para conversar sobre escrever uma história autobiográfica que ainda mexe com a gente (foi uma recomendação da Ana Rüsche numa de nossas conversas), mas estou na reta final da minha segunda gravidez e o momento está pedindo outro foco. Assim que o tempo chegar, te escrevo!
Um beijo!